terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A DITADURA VENCEU

Desde a posse de Lula e do início da administração petista no governo federal, acompanha-se pela imprensa o aumento no número de concessões de vultosas indenizações financeiras para indivíduos que se consideram prejudicados pela ditadura militar.

Famosos e bem-sucedidos artistas, jornalistas e políticos, além de desconhecidos de várias categorias profissionais, sem o menor pudor, recorreram aos cofres públicos para receber milionárias compensações por possíveis danos às suas carreiras devido às suas lutas em defesa da liberdade política.

Se impressiona o fato destas indenizações terem valores muito superiores a outras reclamações que se tem notícia no país, como, por exemplo, nos casos que envolvem a indústria de cigarros, talvez seja de maior relevância as suas conseqüências éticas.

Pode-se argumentar que estas recompensas são injustas pois não se pode medir com precisão os efeitos das perseguições realizadas pelo regime militar no desenvolvimento profissional de uma pessoa. Pressupõe-se que todos seriam indivíduos extremamente competentes que teriam atingido o topo de suas carreiras caso não fossem alvo da investida dos militares. Além disto, muitos dos solicitantes alcançaram sucesso profissional justamente por terem seus nomes associados à luta contra a ditadura.

Aqueles que não combateram, ou mesmo apoiaram os militares (a maioria da população brasileira), não podem se queixar a ninguém por não terem sido bem-sucedidos em suas carreiras. Não interessa se a pessoa se considera lesada pelo fato de ter nascido pobre em uma cidade em que não havia oferta de ensino público de boa qualidade. Só os perseguidos pela ditadura são as verdadeiras vítimas. Portanto, embora se mostrem como uma busca por compensação econômica, estas indenizações, no fundo, representam um julgamento de valor, um julgamento ético.

Além de estabelecer que aqueles que foram alvo dos militares são indivíduos de maior competência na sociedade, as milionárias compensações trazem conseqüências mais importantes.

Se os solicitantes de indenizações queixam-se de ter sido prejudicados em suas vidas pela perseguição da ditadura, eles também estão dizendo que a sua luta por liberdade política e de opiniões foi danosa, que só vale a pena combater o autoritarismo se recebermos em troca uma boa recompensa econômica. Enfim, o que importa na vida não é a defesa da liberdade, não é a honra desta causa, mas a busca por conforto econômico.

Do Brasil à China, os sonhadores de esquerda viraram capitalistas pragmáticos, se renderam às supostas evidências de que o acúmulo de dinheiro é o grande valor humano. De românticos passaram a cínicos (uma metamorfose mais comum do que se pensa, pois é provável que sejam, como se diz popularmente, faces de uma mesma moeda ou farinha do mesmo saco).

Os outrora comunistas e socialistas dão razão aos militares que os acusavam de ser jovens tolos e cheios de sonhos idiotas. Não é só o comunismo que está errado, mas também a defesa do direito de querer mudanças, de pensar diferente, de buscar liberdade. Não são só as idéias, as teorias, que defendiam que se mostraram um engano, mas, da mesma maneira, as suas ações, as suas atitudes de questionamento. O que importa é defender a autoridade, a ordem e a segurança, principalmente a financeira. E todo conformismo com uma resposta, seja ela qual for, como valor humano maior, representa uma ditadura.

Os indenizados, boa parte senhores que já atingiram a casa dos setenta anos ou mais, tratam de garantir maior conforto para si e seus familiares. Boas viagens, bons hospitais em caso de necessidade, imóveis valiosos, uma grande reserva no banco, uma excelente herança.

Esta será a herança que deixarão para seus filhos e netos, este será o exemplo que passarão para as gerações mais novas. Suas batalhas, o fato de abrir mão de sua comodidade, correr riscos e até mesmo ter sido alvo de sofrimentos físicos em nome de acreditar que era possível mudar as coisas, em nome da liberdade, tudo isto foi anulado em troca de milhões de reais.

Se esquecem que talvez, assim, estejam apagando a própria razão de suas vidas. Colocam uma pá de cal em cima dos únicos momentos que valeram as suas passagens pelo mundo, os únicos instantes que deram significado às suas existências. Anulam a si próprios. Deixarão dinheiro, conformismo e mais nada.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

VICKY CRISTINA BARCELONA E EU?

Quem assistiu ao filme de Woody Allen, Vicky Cristina Barcelona, em cartaz na cidade, pode ter saído do cinema com vários questionamentos.

As mulheres se perguntando se são realmente felizes em seus relacionamentos, se também não deveriam experimentar uma aventura amorosa como a vivida pelos personagens do filme. Os homens incomodados pela suspeita, até então inédita, de que suas namoradas e esposas possam não ser tão fiéis quanto eles gostariam de crer. Em ambos os casos, dúvidas muito bem vindas para aqueles que não querem que as suas relações amorosas se transformem em obrigações tediosas.

Muitos consideram que as grandes obras são aquelas que denunciam as misérias, opressões e violências sofridas por determinadas categorias humanas, como mulheres, judeus ou pobres. Diante de trabalhos com esta temática, as pessoas podem se sentir indignadas ou mesmo revoltadas contra os poderosos causadores de tais injustiças. Alguns realizadores, como Michael Moore, se imaginam inovadores e promotores de mudanças sociais ao fazer trabalhos que denunciam a corrupção e as mazelas provocadas pelos tiranos do mundo.

As obras que têm como objetivo fazer uma denúncia apontam, para as pessoas que as consomem, os culpados pela infelicidade de terceiros ou delas mesmas. Estas criações trazem a crença que, se eliminássemos os vilões e toda a sujeira mundial, seríamos felizes. Quem assiste a um documentário de Moore chega à conclusão de que bastaria dar um fim a Bush e seus comparsas para se encontrar a paz e a justiça no planeta.

O espectador de tais trabalhos sente-se confortável na sua condição de superioridade moral. O problema é sempre com os outros, a falha ética de terceiros que não resistem às tentações do dinheiro, do consumismo, das drogas, do sexo, da busca sem limites pelo prazer. Os culpados pela destruição ambiental são as gananciosas corporações capitalistas. O responsável pelo baixo nível dos programas de televisão é o público ignorante, mal-educado e que só gosta de coisas fáceis. Com o espectador está tudo bem, os outros é que deveriam mudar. Ele defende uma vida regrada e correta: para viver em sociedade e ser um exemplo para os outros, as pessoas devem castrar os seus instintos prazerosos e animalescos.

Sejam de direita ou de esquerda, antigas ou recentes, as obras que trazem revelações e explicações sobre os males do mundo sempre são queixosas e moralistas.

Mas pode ser que ficar com uma pulga atrás da orelha depois de ver um filme, ler um livro ou assistir a uma peça de teatro seja uma alternativa melhor do que ter indignação, do que eleger culpados.

Uma obra vale se nos tocar, se nos causar incômodos, se questionar as nossas crenças, se nos tirar um pouco o chão. Enfim, se nos trouxer a possibilidade experimentar algum tipo de mudança, que depois do contato com ela nosso mundo seja algo diferente. Em vez de nos colocar como meros espectadores, a obra deve nos incluir, cobrar de nós alguma coisa.

Mas, para se ter questionamentos diante de uma criação alheia, para que seja possível mudar, é preciso saber-se não acabado, não santo, não perfeito. E, principalmente, não interpretar esta falha como um defeito, uma inferioridade ou um pecado, mas como uma liberdade, um convite à nossa participação na invenção do mundo e de nós mesmos, um convite à ação, à criação, ao amor.

Não é uma questão de trocar a culpa de terceiros pela minha, de ser humilde, de ser um católico em confissão. Não há quem possa nos desculpar, nos perdoar. Temos de eliminar a própria noção de culpa. Se haver como o desamparo de não podermos, com precisão, eleger os responsáveis pelo nosso mal-estar. Talvez o receio de se tomar esta posição seja que, ao eliminarmos um outro que seja o causador de nossa infelicidade, eliminamos também a possibilidade de um outro que nos traga a felicidade.

O problema é que os queixosos, os moralistas e os denunciadores se consomem na expectativa nunca cumprida de um dia viver em um mundo correto e livre de todo o mal. Acreditam que não só a sua insatisfação, mas que também a sua satisfação depende somente dos outros. Ficam esperando eternamente e terminam infelizes. A felicidade é apenas uma promessa que não chega.

Os desamparados de alguém que seja responsável pela sua infelicidade ou felicidade podem pelo menos se perguntar: como é que, não sendo Vicky, nem Cristina e nem morando em Barcelona, eu posso ser feliz?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

cais

Milton Nascimento/Ronaldo Bastos

Para quem quer se soltar invento o cais

Invento mais que a solidão me dá

Invento lua nova a clarear

Invento o amor e sei a dor de encontrar

Eu queria ser feliz

Invento o mar

Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir eu quero mais

Tenho o caminho do que sempre quis

E um saveiro pronto pra partir

Invento o cais

E sei a vez de me lançar

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

AMAR E A IMPOSSIBILDADE DE SER AMADO

O poeta Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Amar, pergunta: Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?

No entanto, parece que a maioria das pessoas vive com outra expectativa: entre as criaturas, ser amada por elas.

Os indivíduos têm como maior objetivo na vida receber o reconhecimento dos outros. Entendem que ser amado é igual a ser reconhecido. Todos os esforços, privações e sofrimentos têm como alvo final receber a recompensa de ser admirado, seja por uma pessoa específica ou pela sociedade.

Por exemplo, mesmo nos grupos terapêuticos que se auto denominam como Mulheres que Amam Demais, com uma observação e uma escuta mais aprofundadas destas mulheres, percebe-se que talvez o nome mais adequado seja Mulheres que Esperam Ser Amadas Demais (se só amassem já estariam tratadas).

No passado, uma pessoa era reconhecida pela sua posição na sociedade, pelos cargos que ocupava na hierarquia social. Hoje as pessoas esperam ser amadas por aquilo que acumularam: a quantidade de dinheiro, os prêmios recebidos, as fotos em revistas de famosos, os amigos no Orkut, quantos convites vips, etc.

Antigamente a possibilidade de ser reconhecido socialmente era para poucos. Só uma pequeníssima minoria tinha acesso às posições admiradas em seu meio. E muitos as recebiam por herança, sem qualquer esforço. A grande maioria se contentava apenas em tentar ser amada por Deus e receber o reconhecimento após a morte, seja no paraíso ou no inferno.

No mundo atual as possibilidades de reconhecimento se democratizaram. A fama pode estar à disposição de todos aqueles que se esforçarem para alcançá-la. Todas as ações visam o olhar dos outros, em bancar uma imagem que possa ser admirada.

Se a satisfação está em ser amado, fica-se sempre fazendo cena para o outro. Deste modo, a pessoa acaba prisioneira de um imaginário, se pergunta qual cena, qual imagem deve apresentar para que o outro a ame. Quais as palavras certas a dizer, quais os comportamentos corretos a adotar. Passa a buscar receitas de como se mostrar, de como aumentar o seu ibope (se pudessem todos contratariam um marqueteiro pessoal). O resultado é que toda a experiência de vida torna-se artificial, fake, empostada. É uma sensação que hoje facilmente se constata, por exemplo, em qualquer entrevista de celebridades na televisão, sejam elas do meio artístico, político ou mesmo intelectual. Não há o compromisso de trazer questões, de tentar dizer algo que se perceba como mais verdadeiro, mais sincero, mas somente de falar aquilo que se supõe que o público deseja ouvir, aquilo que não comprometa a boa imagem. A ousadia e a inovação desapareceram dos meios de comunicação. Mas não é só na TV. Parece que, em qualquer lugar, todos têm uma câmera diante de si, que estão todos no Big Brother. O tempo inteiro as pessoas estão fazendo cena, fazendo pose.

É possível que aqueles que dedicam sua vida ao reconhecimento não consigam experimentar a vida como defende Drummond. Buscam desesperadamente ser amados mas, em troca, renunciam a possibilidade de amar. Ser amado ao preço de não poder amar.

Para amar é preciso estar fora da cena, da armadura de se tentar encontrar uma imagem que possa ser amada e reconhecida. Amar é sinal de que existe uma falha em si e no outro, que não se é perfeito, que se tem buracos, que não se pode vender nem comprar uma imagem ideal para ser venerada. Só ama aquele que percebe o outro e si próprio como incompletos. Amar envolve levar fora, sentir dor, ser ridículo, perder coisas, ficar ciente da solidão.

Amar nunca é uma imagem plena de felicidade. Não se vêem pessoas que amam nas revistas de celebridades. Vêem-se apenas imagens que buscam ser reconhecidas. Amar é ação, é algo que existe enquanto se pratica, uma vivência puramente pessoal que não pode ser fotografada como uma cena idealizada.

Quem já foi a uma festa de lançamento de novela, cheia de famosos, ou passou um final de semana na Ilha de Caras sabe que não existe nada mais artificial e sem graça do que estas experiências. Ao contrário do que possa parecer, do que mostram as revistas, talvez as celebridades tenham vidas muito mais aborrecidas do que a da jovem que mora no morro e sofre com o namorado bêbado e desempregado.

Amar é uma ação sem fim, não visa a um objeto acabado. É uma eterna invenção. Por isto, embora as pessoas possam amar, elas não podem ser amadas, reconhecidas enquanto uma imagem final, pronta e perfeita. Existe uma distância entre a idealização que se faz de alguém e o que esta pessoa é. Ama-se fantasiando, fazendo uma invenção e não encontrando o verdadeiro amor. Esta deve ser a razão de os amantes estarem sempre se surpreendendo com os amados.

Como é comum ouvir que em determinado momento se descobriu que a pessoa antes amada é muito diferente da idealização que se tinha dela. O problema é que, nestas horas, se troca uma fantasia por outra. De príncipe ou princesa, passa-se a perceber o outro como sapo. Mas, no fundo, ninguém é Deus ou diabo. Somos um mistério constante para os outros, uma imagem inacabada.

Mas se não se pode ser amado, se pode provocar amor em alguém. Para isto, somos permanentemente convidados a nos reinventar, a mudar. Se paramos, se nos convencemos de uma imagem, se nos sentimos amados e reconhecidos, deixamos de provocar amor, de demandar invenção. É preciso amar a si próprio e se enxergar também como uma criação sem fim.

Provocar amor não é igual a cobrar e esperar que o outro me ame. Depende de nós e não do outro. Um encontro entre duas pessoas, uma relação amorosa, pode ocorrer quando cada uma consegue provocar amor na outra. Para isto é necessário abandonar a expectativa de ser amado. Trata-se de um paradoxo interessante: Para encontrar o amor de outra pessoa é preciso se convencer da solidão.

Entender que amar é inventar permite fazer uma diferenciação entre celebridades e artistas. A celebridade está sempre atrás do reconhecimento. Já o artista tem como principal objetivo fazer uma obra. O reconhecimento é conseqüência, não a meta primeira. Uma obra é uma demanda de invenção, algo que exige vir ao mundo. Ela usa o artista para ser criada, mas depois torna-se independente dele. Seu uso e apropriação posteriores escapam de qualquer controle de quem as criou. O artista acaba se sentindo usado: a obra é que é reconhecida, não ele.

Para quem se preocupa em ser reconhecido não é bom negócio ser artista. O artista pode até obter reconhecimento, mas sempre posterior a sua criação, muitas vezes após a sua morte. O artista que cria algo que é admirado de imediato pode se encantar e, neste momento, deixa de ser artista. Acredita que encontrou a fórmula certa, pára de criar e passa apenas a se repetir. Nada de novo acrescenta.

Mas qual a vantagem de se dedicar a vida a uma obra, a uma invenção? Quem sabe a possibilidade de amar. De experimentar esta condição que talvez seja a única real, autêntica, que pode tocar o nosso corpo.

Ser amado, reconhecido, é algo que se fica tentando a vida inteira sem se alcançar. É viver para uma ilusão, é viver sem viver. Diante da promessa nunca cumprida de ser bem-amadas, as pessoas acabam se percebendo como mal-amadas. Mesmo as celebridades, com o tempo, são descartadas e esquecidas, perdem a veneração de seus fãs. O público quer sempre imagens novas para alimentar a sua ilusão.

Sentir-se mal-amado, esta é a grande queixa de homens e mulheres. Seria melhor se haver com o fato de que ser amado é uma impossibilidade. Uma criatura só pode amar, só pode criar. E amar é uma ação sem retorno. Versos de Drummond: doação ilimitada a uma completa ingratidão.

Amor sem conta, não há outra saída para os seres humanos. Amar é a característica humana essencial, a nossa maior diferença em relação às outras existências do universo. Ao amar, inventamos um outro amado, inventamos nós mesmos, as coisas, a realidade. Amar é a solução humana para a impossibilidade de ser amado, de tudo conhecer, de conquistar o universo, de vencer a morte. Mas, para amar, temos de saber deste impossível, temos de encará-lo e até mesmo amá-lo. O poeta finaliza: Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

sábado, 15 de novembro de 2008

BARACK HUSSEIN OBAMA E A GLOBALIZAÇÃO

O presidente eleito dos Estados Unidos é filho de um queniano, nasceu fora do continente americano (no Havaí), morou um tempo na Indonésia e tem um nome que remete tanto à África e a países islâmicos quanto aos dois principais malfeitores do governo que vai suceder: Saddam Hussein e Osama Bin Laden.

Mais do que permitir que o primeiro negro (ou mulato) chegasse à presidência, a maior importância desta eleição talvez esteja na associação de Obama com países pobres e alguns classificados pelo seu antecessor como integrantes do eixo do mal. Sua vitória foi comemorada entusiasticamente não só nos EUA, mas em toda periferia do mundo.

Não sei se ele dará crédito aos dados biográficos que o ligam à parte marginalizada do planeta. Poder ser que tente ignorá-los e governe apenas com o objetivo de atender aos interesses norte-americanos. Se agir assim, Obama estará cometendo um erro grave. O engano está no fato de que a saída para a atual crise mundial pode depender da eliminação das diferenças econômicas e morais entre os diversos países.

A eleição de Obama mostrou que, em uma nação anteriormente tida como racista, a cor do candidato não importa mais. A escolha de um negro para o cargo mais importante do planeta nos diz que a maioria das pessoas não acredita no fator raça como algo que realmente represente uma divisão significativa entre os seres humanos. Significativa no sentido de poder-se dizer que determinada raça seja superior ou inferior a outra. Que se possa classificar alguém como melhor ou pior tendo em vista a sua origem racial.

Mas a vitória do filho de um queniano deveria também indicar que outra divisão já não convence mais no sentido de se poder estabelecer separações hierárquicas entre os indivíduos que habitam o planeta: a nacionalidade de cada um.

Do mesmo modo que não existem mais argumentos com um mínimo de validade para atestar que brancos, negros ou amarelos sejam melhores uns que os outros, não se pode mais defender que iranianos sejam superiores ou inferiores a noruegueses.

Assim como as diferenças entre raças são apenas superficiais e aparentes, as diversas nacionalidades também não diferem em sua essência e nas suas condições de desenvolvimento. Independente de onde se tenha nascido e da cultura herdada, a globalização mostrou que as potencialidades humanas são as mesmas. E, se cai por terra a crença na hierarquia de nacionalidades, tem-se como conseqüência lógica a queda também dos indicadores que apontam que uma nação é melhor ou pior que outra: a divisão entre países ricos e pobres, a divisão entre países do bem ou do mal.

A globalização, ao contrário do que muitos pensam, talvez seja mais a eliminação das separações hierárquicas entre as nações do que a imposição do capitalismo sobre todos os povos. Uma imposição que tenderia só a aprofundar a distância entre ricos e pobres. O que se globalizou foi a percepção de que todos podem ter o direito de mudar de vida sem levar em conta as condições fixas do nascimento. Aquilo que se afirmou entre os norte-americanos acabou por se difundir como um desejo mundial: o indivíduo pode ser responsável por inventar a sua história. Que nenhum fator geral como raça, etnia, nacionalidade, crença religiosa ou aspecto físico significa uma limitação real à mudança e ao desenvolvimento de uma pessoa.

Não se resolverá a crise atual mantendo as restrições e os protecionismos que impedem que os diferente países possam permitir aos seus cidadãos melhorar de vida. Não dá mais para conter o movimento legítimo que demanda o fim da divisão da riqueza mundial . Não é mais possível a defesa apenas dos interesses nacionais. Pensar antes em seu país representa hoje uma obscenidade. A globalização fez os EUA serem toda a terra. E Barack Obama deveria aceitar o que a imprensa mostrou: que ele não foi eleito só pelos EUA mas por todo o planeta.

É possível que tenha acabado a era de países imperialistas, hegemônicos, das potências mundiais.

A própria questão ecológica mostra que os efeitos das economias locais são globais. Para se pensar regionalmente deve-se levar em conta o que está sendo feito em todo o planeta. E se não temos recursos naturais ou capacidade ambiental para que todos os terráqueos tenham as mesmas condições de consumo que americanos ou japoneses, temos de repensar a idéia de que a satisfação está no acúmulo de bens e passar a apostar que ela possa estar mais no uso do que temos. Um mundo cuja felicidade está na aquisição sem fim de produtos é uma mundo ainda destinado a manter a hierarquia entre privilegiados e deserdados.

No futuro, com as quedas de fronteiras e a livre circulação dos indivíduos, talvez as pessoas possam viver sob bandeiras diversas, competir nas Olimpíadas sob variados nomes ou classificações. Mas estas divisões representarão o mesmo que uma divisão entre flamenguistas, corintianos ou colorados. Não se pode fazer qualquer afirmação sobre algo preciso que os diferencie, de características comuns que os definam enquanto grupo. Que a única diferença seja a escolha individual por determinado clube, o fato de se estar em determinado momento sob a mesma bandeira.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ENSINAR E ESTUDAR: OBRIGAÇÃO X PRAZER

Li que o atual governo da Itália está promovendo o retorno de métodos de avaliação mais rigorosos no sistema de educação do país. Os estudantes voltarão a ser avaliados por pontos, de 0 a 10, ao contrário do atual método que, de modo genérico, apenas classifica o desempenho de cada aluno como insuficiente ou suficiente. No novo modelo, uma parte dos pontos será dada de acordo com o comportamento do estudante em sala de aula. Os bagunceiros e arteiros deverão ser punidos em nome da boa disciplina. E, se os resultados ainda se mostrarem aquém do esperado, talvez o sr. Berlusconi opte por um rigor ainda maior, ressuscitando palmatórias e, quem sabe, o ordeiro método de deixar alunos rebeldes ajoelhados sobre grãos de milho (não sei se na Itália existem varas de marmelo).

A reforma italiana não é uma iniciativa isolada do governo, mas atende a uma demanda dos assustados professores do país, que não sabem mais o que fazer contra a truculência e a violência dos jovens estudantes sem limites. Esta queixa não é só dos educadores italianos, mas parece comum em todos os lugares em que foram adotados modelos de ensino mais liberalizantes com menor rigor na avaliação. Em várias cidades do Brasil, por exemplo, é freqüente o relatos de professores estressados com a indisciplina ou mesmo com as ameaças de agressões físicas por parte do alunos.

É um esquema que temos visto de uma forma geral no mundo de hoje: queda de modelos autoritários, maior liberdade, medo da liberdade, tentativas de retorno dos sistemas autoritários. Dá-se um passo para frente e depois outro para trás. Assim, corre-se o risco de jamais sair do lugar. E o que fica parado, em nosso ambiente em constante mudança, tende a perecer. A capacidade de adaptação e sobrevivência está na habilidade de mudar.

Talvez o problema dos modelos liberalizantes implementados esteja muito mais no que eles ainda carregam dos sistemas tradicionais do que em seu objetivo de criar condições de relacionamentos humanos que não passem pela arbitragem de uma autoridade, em sua essência de liberdade e de responsabilidade individual.

Na educação, por exemplo, por mais que tenha diminuído o poder dos professores nas salas de aula e por mais democráticas que sejam as novas pedagogias, elas ainda se sustentam sobre o mesmo sentimento de dever e de obrigação dos modelos rigorosos do passado.

No sistema tradicional, os estudantes têm a obrigação de estudar para tirar boas notas e passar de ano para alcançar o objetivo final de ser uma pessoa honrada na sociedade. Eles têm o dever de atender o que os pais esperam deles. O ato de estudar é sempre movido por uma ameaça, pelo medo de ser punido caso não se tenha um bom desempenho. O professor, assim como um pai, é uma autoridade investida de poder, deve ser respeitado e temido. O conhecimento e o saber são vistos como uma imposição, como algo ruim e difícil que se deve engolir para se atingir um objetivo maior que é tornar-se um individuo socialmente reconhecido.

Estudar, neste modelo, é um esforço doloroso e árduo, mas que poderá trazer aos que se submeterem a ele recompensas futuras. O aluno deve apenas memorizar o conteúdo pronto que lhe é dado, não interessando os questionamento sobre os ensinamentos apresentados. O saber está do lado apenas dos professores, sendo o aprendiz como uma caixa vazia a ser preenchida pelo conhecimento acabado dos seus mestres. Se algo não vai bem, a culpa é exclusiva do aluno que não se dedicou como deveria. A forma de se corrigir isto é com uma boa punição, um castigo severo. O professor é colocado em um lugar divino e os estudantes no de potenciais pecadores.

Passamos deste modelo autoritário para outro que preconiza maior respeito aos estudantes. Cada aluno tem o direito de ser ouvido em seus questionamentos e as relações devem ser mais igualitárias, sendo o poder dos professores sujeito a limites. São proibidos castigos físicos e mesmo aqueles verbais que representem um ofensa moral ao aluno. Se o desempenho não é o desejado, deve-se avaliar a responsabilidade por isto em algo externo ao próprio estudante. Pode ser um problema social como a pobreza, familiar como abusos violentos cometidos pelos pais, alguma doença ou condição física não diagnosticada como dislexia ou, quem sabe, professores mal preparados. Pelo visto, este último parece ser o alvo cada vez mais freqüente nos diagnósticos das falhas educacionais de hoje.

A culpa deixou de ser dos alunos, que sempre são encarados como vítimas, e passou para o lado dos educadores. Os professores devem dar aulas de acordo com métodos padronizados, seguir as receitas pedagógicas estabelecidas e, do mesmo modo que seus aprendizes, ser avaliados por medidas quantitativas. Não há espaço para a habilidade individual, para a criatividade de cada um.

Os modelos liberalizantes ainda mantêm, mesmo que invertida, a mesma divisão entre culpados e inocentes do modelo tradicional. Ser professor passou a ser sinônimo de uma vida profissional sofrida e estressante. Os alunos se transformaram em pequenos tiranos.

Outro fator comum tanto no método tradicional quanto no democrático é que eles colocam o saber, o aprendizado, apenas como um meio de se atingir algo mais importante na vida. O valor e a satisfação não estão no conhecimento, mas nas recompensas que ele pode trazer. Estuda-se e sacrifica-se pensando que, desta maneira, será possível ter uma profissão importante, ganhar dinheiro, adquirir bens de consumo e ser reconhecido socialmente.

O professor não é mais uma autoridade temida, mas um empregado contratado que, assim como as matérias estudadas, é somente uma ferramenta para se alcançar o sucesso esperado. Diante deste cenário não se pode estranhar a pouca valorização atual dos professores em relação a outros profissionais.

Mas a tentativa de ressuscitar a autoridade de professores por meio de avaliações mais rigorosas e da ameaça de punição pode se mostrar totalmente ineficaz. Deve-se levar em conta que os educadores, assim como todas as demais autoridades, perderam seu poder e status porque a história nos mostrou que seu saber não era pleno, mas cheio de falhas. Percebeu-se que as avaliações são sempre subjetivas, mesmo que tenham uma aparência matemática e objetiva, e que elas respondem a caprichos sobre os quais a própria pessoa que as aplica não tem pleno conhecimento e controle. Não se pode recuperar a crença na infalibilidade dos mestres apenas pelo medo de receber punição. Seria pedir aos estudantes para que eles fossem idiotas. Além disto, uma aposta nos números, em uma tentativa de objetivar as avaliações, só fará com que o conhecimento continue sendo encarado como uma obrigação, um mal necessário e, desta forma, continuaremos tendo professores e ensino desvalorizados.

Talvez a melhor forma de seguir em frente e não ficar retrocedendo a toda hora seja apostar em uma maneira de tornar prazerosa a experiência do conhecimento. Para isto, é necessário que o saber tenha um valor em si, que ele traga satisfação, que ele seja a própria recompensa. Para tanto, as falhas e os buracos no conhecimento trazido pelos professores deveriam ser interpretados não como um erro, um problema, mas como um convite para a contribuição de cada estudante. O conhecimento, desta forma, é visto como um projeto inacabado, mas nem por isto ruim. Ao contrario, é nesta falta de completude que se encontra o seu encanto.

Ao se colocar o valor não no acúmulo de saber mas no seu uso, na possibilidade da sua invenção, o aluno se sente incluído e responsável. De um aprendiz oco, passa a ocupar o lugar de um pesquisador iniciante. Em vez de uma obrigação, aprender, assim, pode se tornar um prazer, uma brincadeira séria.

Tanto professores quanto alunos deixam de ficar se culpando um ao outro por seus fracassos e podem passar a se perceber como parceiros.

O problema de se tentar um ensino por prazer e não por obrigação é que se precisa de professores que sustentem esta possibilidade. De educadores que não temam a liberdade dos seus alunos, que não queiram ser respeitados e temidos, mas admirados pelo seu encanto em relação ao saber, que não fiquem presos às ameaças ao seu lugar imaginário de poder. Professores que saibam que seu valor não está tanto no conhecimento que portam, mas nos seus exemplos de entusiasmo, que apostem que ensinar está muito mais próximo de contagiar do que de cobrar.

Professores que ditam conhecimento e que esperam que seus alunos aprendam por obrigação formam indivíduos sempre dependentes de um outro que lhes diga o que é o melhor a ser feito. Pessoas que serão eternos estudantes imaturos.

Professores que escolham fazer do saber uma invenção e compartilham prazer ao ensinar formam indivíduos criativos, que não se frustram nem desanimam diante das incertezas com as quais se deparam na vida. Pessoas que tomam para si a responsabilidade pelo conhecimento.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

TRANSTORNO ECONÔMICO BIPOLAR E SEUS TRATAMENTOS

Estamos todos perdidos em relação à atual crise financeira mundial. As bolsas despencam, planos de emergência são feitos pelos governos, as bolsas voltam a subir para no outro dia afundar de novo. E ninguém consegue explicar de maneira convincente as razões das quedas ou das altas. Parece que assistimos a uma gangorra que tem vida própria e caprichos de humor que desconhecemos completamente. Não temos a menor idéia do que esperar, de quais serão as conseqüências da turbulência pela qual passamos.

Os sábios economistas, aqueles que conheciam de cor a fórmula segura para o contínuo desenvolvimento econômico, estão tão atordoados e inseguros sobre o que fazer quanto qualquer pessoa que não entende nada do mercado de capitais.
Mesmo os vários planos e ações lançados por governos de diferentes de países para solucionar a crise soam como tentativas assustadas sem qualquer garantia de sucesso.

Diante das incertezas, da falta de explicações convincentes, são apontados os culpados de sempre: a crise é conseqüência do individualismo e da ganância desenfreada humana, a mesma ganância que está destruindo a natureza e mantendo guerras injustas contra povos indefesos. Para segurar este descontrole, também o remédio é o mesmo do passado: maior presença do Estado na economia, mais fiscalização, mais rigor, mais punição.

Tanto mais verdadeira é a crença no pecado do querer demais como o culpado pelo transtorno econômico atual se levarmos em consideração que a crise teve origem no país visto como o mais ganancioso, arrogante e de menor controle do Estado na vida das pessoas: O Estados Unidos da América. O mesmo país que reluta em seguir as limitações para emissão de poluentes estabelecidas pelo Protocolo de Kyoto e que invadiu, sem nenhuma razão convincente, o Iraque. E agora a especulação desregulada de seu sistema financeiro poderá causar a recessão da economia mundial. A liberdade dos americanos estaria prejudicando todo o planeta.

Na última grande crise econômica mundial, após a Primeira Guerra Mundial, diante das incertezas e da queda de modelos de segurança anteriores, muitos países fizeram a opção de ser guiados por governos e líderes fortes que prometiam a volta da ordem. Este processo resultou na Segunda Guerra, nos crimes nazistas, na morte de milhões de pessoas e na destruição de vários países. No fim, o grande vitorioso, o país que melhor soube sair da turbulência e orientar uma nova organização mundial, foi justamente aquele que não recorreu às receitas autoritárias do passado. O país que apostou em soluções novas para os conflitos de seu tempo, na liberdade e na capacidade individual de seus cidadãos. Os mesmos EUA que agora são apontados como responsáveis pela decadência mundial.

Após a queda da inimiga União Soviética, os EUA, como única nação hegemônica, parecem ter ficado assustados e perdidos no papel de guia mundial. Tomaram para si a função de botar ordem no planeta, de resolver todos os conflitos. Os americanos acreditavam na capacidade individual de seus compatriotas de se virar mas não demonstraram a mesma crença em relação aos habitantes de outros países. E o lugar de pai mundial, com o tempo, começou a cobrar o seu preço.

Nos últimos anos os americanos têm vestido a roupa de um império decadente. Passaram a se comparar e a reconhecer em si vícios iguais aos que levaram Roma a perder o seu império. Ficaram com vergonha das características que marcaram sua particularidade no mundo. O liberalismo econômico, a confiança na capacidade empreendedora de cada indivíduo na conquista de uma vida melhor , a pouca regulação e presença estatal, o acolhimento de diferentes formas de pensamento, as garantias à liberdade individual. Parece que os americanos se sentem arrependidos disto tudo. A jovem e confiante nação de repente se vê velha e frágil.

Onze de setembro, George Bush e seus auxiliares moralistas e incompetentes, fracassos no Iraque, no Afeganistão e em Israel, aquecimento global, crescimento da direita cristã, os dogmas matemáticos, o convencimento cego de que bastam uma pesquisa quantitativa e uma análise estatística para se encontrar a verdade das coisas, a idiotice do politicamente correto e da literatura de auto-ajuda, Michael Moore, China e outros países anteriormente pobres e atrasados crescendo a taxas vertiginosas. Tudo isto culminando com a perda da liderança no número de medalhas nas últimas olimpíadas. Os americanos chegaram a conclusão que as suas fórmulas não funcionam mais. Não sabem mais apontar os caminhos para o mundo, começam a copiar modelos que preconizam a maior intervenção do Estado contra tudo o que acreditaram no passado. Diante da crise dão um passo para trás. Talvez fosse melhor inventar um forma de seguir caminhando para frente.

O fato de encontrarmos obstáculos pelo caminho, de novos problemas surgirem a cada passo, mostra apenas que nenhuma fórmula é perfeita e definitiva que, por exemplo, o liberalismo econômico não é o fim da história como alguns defenderam. A todo momento é necessário abandonarmos crenças e inventarmos soluções. Por que não descobrir uma maneira de manter a economia andando sem destruir a natureza? Precisamos neste momento de invenções, de criatividade e não de medo, pânico, retrações e recessões. O pior que pode ser feito é ficarmos parados ou recuarmos diante dos nossos desafios.

Clamar por uma maior presença e controle estatal na economia é um retrocesso que só impedirá que ela volte a crescer, prejudicando principalmente os países mais pobres que pareciam estar encontrando um rumo para pôr fim à pobreza como o estilo de vida da maioria de seus habitantes. Na história de humanidade, estados fortes e reguladores só serviram para sustentar a crença na divisão entre privilegiados e deserdados. Temos de abandonar a ilusão de que os governos existem para defender a maioria ou os menos favorecidos. Os governos, principalmente aqueles mais autoritários, só conseguem proteger e enriquecer os pequenos grupos que detêm o poder como nos exemplos da extinta URSS ou de Cuba. O Estado forte sempre foi sinônimo de paralisia econômica e de idéias. E uma acaba por repercutir na outra, como descobrimos nós brasileiros com o crescimento sem divisão do bolo e inconsistente durante o regime militar e como, mais cedo ou mais tarde, descobrirão também os chineses.

Vivemos um época de liberdade sem igual na história da humanidade. Mas estamos correndo o risco de interpretá-la como algo prejudicial, como se a liberdade fosse perigosa para a vida do ser humano no planeta. O problema é que esta liberdade é fruto da falência do mesmo remédio que agora estamos tentando usar para controlá-la: a impossibilidade de uma autoridade, de um outro que saiba e nos garanta a receita do bem-viver.

Temos de parar de interpretar o individualismo ou o fato de queremos sempre uma vida melhor ou diferente como pecado, como egoísmo e ganância. Se não temos um outro poderoso para nos controlar e nos guiar, temos nós mesmos, em nossa solidão, de nos virar. E só assim aprenderemos a ser responsáveis. Talvez, quando desistirmos de vez da crença em uma autoridade infalível, o nosso desamparo nos traga não egoísmo e violência mas solidariedade, fraternidade e amizade.

É possível que crise econômica atual só se resolva se, de alguma forma, os americanos voltarem a acreditar neles mesmos, em sua capacidade de inventar novas maneiras de defender a liberdade individual contra o vencido remédio do Estado forte. Caso isto não ocorra, a saída pode depender de que outras nações consigam cortar a corda com que os americanos carregam todos para baixo. De que outros países apostem na possibilidade de que o seu crescimento independe da recessão americana. Ao se soltar, estes países poderão impulsionar o resto da economia mundial. Se os americanos puxam para baixo é preciso que apareça alguém que puxe para cima.

E quem teria condições para isto? A resposta talvez seja um país marcado pelo entusiasmo e pela confiança. Um país que não se construa a partir da cópia de modelos do passado mas que aprenda com eles e ouse criar soluções novas para o mundo, que saiba desvencilhar o crescimento econômico da poluição ambiental, da necessidade de que outras nações permaneçam na pobreza, do imperialismo bélico ou da massificação de seus habitantes. Um país que renove a possibilidade de que continuemos seguindo com mudanças, inventando e crescendo mesmo sem saber para onde. Uma nação que permita o avanço tecnológico sem associá-lo à destruição, que não faça do desejo de desenvolvimento econômico um pecado.

Que país estaria em condições de atender a este chamado? Qual nação será a nova América, o novo mundo, um lugar que ofereça como primeira experiência para aqueles que chegam a visualização de uma imagem colossal da liberdade? China, Índia, Rússia? Brasil?

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

CANÇÕES DE AMOR

Fazer filmes sobre o amor parece um tanto ousado e arriscado nos dias de hoje. É mais seguro e certo realizar ficções que mostrem a violência, a corrupção e as destruições provocadas pelo ser humano. Obras românticas soam como ilusões velhas, maniqueístas e cafonas.

Não se acredita mais no amor sincero. Existiria sempre um segundo e verdadeiro interesse por trás. Os homens, segundo as mulheres, só querem saber de sexo. Depois que o conseguem, todas as juras anteriores feitas por eles revelam-se mentiras cínicas. As mulheres, para os representantes do sexo masculino, no fundo estão apenas interessadas no dinheiro, no cartão de crédito ou em usufruir o prestígio daqueles por quem elas fingem ter amor.

Segundo esta visão, mais cedo ou mais tarde, aqueles que caírem no conto-do-vigário da paixão vão descobrir a dura verdade: a promessa de amor é sempre uma enganação. E quem se deixar iludir, vai ser usado e se dará mal. Na expectativa de ser traído ou abandonado, vive-se em permanente estado de defesa contra a idéia de se mostrar apaixonado. Se o outro descobre que me entreguei, vai me desprezar e me trocar. Os relacionamentos, então, se transformam em disputas de gato e rato. Só gosto quando não sou gostado, só sou gostado quando não gosto.

Para os descrentes, o convívio amoroso só ocorre por uma praticidade social ou para satisfazer necessidades físicas ou, como está na moda hoje, biológicas e evolutivas.

No mundo em que vivemos não é considerado bom negócio ter qualquer tipo de ilusão. Qualquer ideal, seja ele amoroso, artístico, político ou, como debatido nas últimas semanas, econômico, é visto como uma armadilha destinada a pegar os trouxas. Temos que ter salvaguardas e nos policiar o tempo inteiro. Os idealistas são vistos como tolos antiquados. A verdade que teria sido descoberta, depois de séculos de crendices idiotas, é que o ser humano é vil na sua essência, só funciona civilizadamente sobre pressão e medo. Se a nossa natureza é tão selvagem quanto a dos animais, nós também temos de ser adestrados e condicionados por mecanismos de punição e recompensa.

Voltando ao âmbito dos relacionamentos afetivos, é interessante observar que tanto os idealistas quanto os desacreditados acabam encontrando o mesmo desfecho. Ambos fazem do amor uma impossibilidade, um grande desencontro.

Para os céticos, o amor é uma mentira. Já no modelo idealista romântico, os amantes estão sempre separados por um obstáculo que os impede de realizar seu desejo de viver felizes juntos. Normalmente este encontro fica destinado a ocorrer somente após a morte, na eternidade. O representante clássico deste esquema é o romance de Romeu e Julieta. Mas podemos tomar exemplos mais modernos, como nas sofridas histórias dos filmes Love Story ou do mais recente O Segredo de Brokeback Mountain.

Os dois modelos, romântico e cético, por mais que não se reconheçam, compartilham de um mesmo mecanismo. Ambos acreditam que ideais possam ser verdades, têm fé que suas crenças possam ser uma realidade palpável. Para os românticos, a pessoa amada é a sua cara metade. Já os céticos têm como ideal a crença de que seu par é um animal interessado apenas em perpetuar seus genes.

É provável que Canções de Amor, filme em cartaz no momento, ofereça uma outra opção que não seja a de viver acreditando em um ideal que impeça o encontro amoroso. (Caso considere fundamental para o prazer de assistir a um filme o total desconhecimento de seu enredo, novamente recomendo que se veja o longa antes de ler o texto abaixo)

Nas primeiras cenas do filme, o casal principal vive uma crise comum aos relacionamentos de hoje. Ela quer que ele lhe dê provas de amor e, para provocá-lo em sua frieza, coloca uma outra mulher na história. Não dá muito certo e a moça carente morre inesperadamente sem alcançar o resultado pretendido. O rapaz, então, diante da perda, descobre que amava a parceira. Mas aí já é tarde. Seria mais um exemplo de amor romântico se o filme terminasse aí. Mas ele segue e com algumas surpresas.

O rapaz passa a ser alvo da investida decidida de um garoto que ele conhece por acaso. No começo resiste, faz cortes e recusas, coloca a impossibilidade do relacionamento dar certo em virtude das diferenças entre eles. Depois, diante da insistência do garoto, o mais velho cede e acolhe o seu amor.

Não considero que o mais importante no filme seja o fato de o relacionamento ocorrer entre dois homens. A história trata disto com grande naturalidade, como se não importasse muito o sexo dos personagens. O homossexualismo, pelo preconceito da sociedade, normalmente é apresentado no cinema atual como um obstáculo para a realização plena dos amantes, como no citado O Segredo de Brokeback Mountain. Canções de Amor não segue este caminho.

A diferença que o filme apresenta é a aposta feita pelo personagem do garoto na conquista do amor. Ele não desiste e nem se desencanta diante das negativas constantes do rapaz. Não se envergonha de procurar o seu amado no emprego, em segui-lo pelas ruas, em falar claramente do seu desejo. Ele parece não ter vergonha de desejar, de amar.

Quando recebemos uma recusa amorosa, é comum que fiquemos abalados, com raiva da pessoa desejada e, ao mesmo tempo, com baixa estima e perda de amor próprio. Vestimos facilmente a carapuça de mal-amados. Fazemos do nosso afeto uma carência chata. O garoto do filme soube manter a confiança mesmo levando vários pés na bunda. De alguma forma aprendeu a desvencilhar sua própria imagem do fato de não ter seu desejo correspondido. Quando aparecia um obstáculo, ele inventava uma solução em vez de ficar paralisado diante do problema. Persistindo, conseguiu transformar em realidade o seu sonho amoroso. Não ficou só na expectativa, como os românticos, ou na impossibilidade, como os céticos.

O garoto insistente não esperou pelo príncipe encantado que nunca vem, nem acreditou que seu amado fosse na verdade um sapo. Ele correu atrás, deu seu jeito para que a coisa acontecesse.

É possível que ele acreditasse que a pessoa querida não fosse um ser definido, acabado. Que poderia fazer surgir algo de novo naquele que ele ama. Não tinha a percepção que seu ideal amoroso fosse uma realidade externa pronta, mas algo que dependia do seu investimento, da sua invenção.

Talvez seja este o exemplo mais importante de Canções de Amor. Os ideais podem ser um meio de encontrarmos satisfação, uma ferramenta, e não a própria felicidade, um fim em si. Percebemos com a atitude do garoto que os ideais não são realidades palpáveis esperando pela nossa chegada, mas que eles são invenções nossas. A satisfação pode ser inventada e não descoberta.

Se temos a pessoa amada como um ideal final de felicidade que independe de nós, ficamos na insatisfação e o amor se torna uma escravidão. Mas se sabemos que idealizamos uma pessoa para poder amá-la e ser felizes, o amor é uma libertação.

Paris, em Canções de Amor, é novamente apresentada como uma cidade com vocação romântica. Mas não com uma cara velha. No filme vemos uma capital moderna do mundo globalizado. De forma realista, circulam pelas suas ruas e praças pessoas de diferentes cores, origens e classes econômicas. Não é a cidade glamourosa a que estávamos acostumados a ver no cinema. Não é o lugar em que se passavam histórias de amor idealizadas e muito distantes da nossa realidade. Este era um cinema para sonhar e não para realizar. De maneira diversa, ao sair de Canções de Amor, podemos nos perguntar por que também não viver uma história assim.

Ficamos um pouco decepcionados quando perdemos a esperança do ideal externo. Mas nos tornamos mais livres e ao mesmo tempo mais responsáveis pelo nosso destino. Além disto, como os atores do filme, podemos cantar canções de amor.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A BOLHA ESPECULATIVA DE DAMIEN HIRST

Há muito me pergunto sobre como uma obra de arte pode ser provocadora nesta época em que tudo é automaticamente transformado em mercadoria. No mundo especulativo em que vivemos, as obras não têm valor em si, não são avaliadas por suas qualidades intrínsecas e particulares, mas de acordo com a cotação genérica das grifes que ostentam no mercado. Se compra e se admira Picassos e não a Les Demoiselles d’Avignon de Picasso. A única informação necessária para se avaliar um trabalho é saber se o artista que o produziu está em alta ou em baixa nas bolsas de valores artísticos.

Na semana passada, finalmente assisti a algo que me pareceu original e perturbador no universo das artes: a venda de 223 trabalhos recentes do artista britânico Damien Hirst na famosa casa de leilões Sotheby’s de Londres

A originalidade não está tanto no fato de o artista ter vendido suas obras diretamente em um leilão, invertendo o tradicional modelo no qual trabalhos recentes devem primeiramente ser comercializados em galerias.

O que me parece inusitado foi ter-se vendido obras de arte por valores exorbitantes em um esquema no qual o comprador leva somente a obra, ficando a arte com o artista.

As dezenas de trabalhos comercializados no leilão foram feitas em poucos meses, em escala industrial, por 120 assistentes do artista. Eram cópias genéricas ou caricaturas grosseiras de obras anteriores de Hirst, principalmente aquelas de maior impacto popular, como animais mortos mergulhados em tanques de formol. Foram nomeadas com títulos cafonas e supostamente poéticos como “Anatomia de um anjo” ou “O sonho destruído”.

Os novos milionários da Rússia e da Ásia, cegos pelo impulso de fazer um investimento ao mesmo tempo rentável e cosmopolita, trataram de correr e gastar tubos de dinheiro para adquirir um produto da grife Damien Hirst, o artista sensação que por muitas revistas que adoram fazer listas é considerado o número um das artes plásticas em todo o planeta.

O próprio artista colaborou na criação de uma bolha especulativa em torno dos seus trabalhos. Pediu para que amigos dessem lances altíssimos no primeiro dia de leilão, criando, desta maneira, um furor competitivo que fez com que as obras fossem arrematadas por valores superiores aos esperados inicialmente.

O leilão me lembrou a conhecida história do rei que queria a mais bela roupa do mundo e contratou pretensos famosos costureiros que lhe fizeram um traje que não existia. Assim como o rei do conto, os compradores de Hirst pagaram para ficar nus.

Os novos donos dos trabalhos do artista britânico, com o tempo, vão descobrir que as obras, permeadas por uma promessa de eternidade conferida pelo formol dos tanques ou pelo mármore de Carrara de uma escultura, são efêmeras e não valem um tostão.

Com Marcel Duchamp e seus ready-made descobrimos que qualquer coisa pode ser um objeto de arte. Mas o mercado entendeu esta afirmação como se a arte fosse qualquer coisa. O leilão de Hirst talvez nos esclareça melhor, mostrando que o fato de poder não quer dizer que todas as coisas sejam arte. Nem todas as rodas de bicicleta ou urinóis são obras de arte. Somente aqueles que o artista escolhe e apresenta ao olhar alheio que neste lugar os reconhece. As coisas, enquanto categorias gerais, são mercadorias, produtos de utilidade e valor definido que, deste modo, podem ser comercializadas. As obras de arte, mesmo quando são objetos retirados do cotidiano, têm valor e utilidade que não podem ser precisados. Elas possuem características que as fazem singulares, não podendo ser classificadas a partir de generalidades do tipo “isto é um Matisse”. Um mesmo artista pode produzir arte e mercadorias.

Damien Hirst acaba de vender suas mercadorias. E elas podem ter um destino igual ao dos aparelhos eletrodomésticos que rapidamente ficam fora de moda: o lixo.

Por uma fantástica coincidência ou por uma brilhante intuição do momento, o leilão do britânico ocorreu na semana em que as bolsas de valores desmoronaram em todo o mundo. Do mesmo modo que os compradores da grife Hirst um dia descobrirão, os investidores foram confrontados com o fato de que seus investimentos não têm o menor lastro na realidade. Em pânico, eles agora buscam um pilar de segurança para poder colocar seu dinheiro. E, mais uma vez, o Estado, o grande pai regulador, é chamado para pôr ordem na bagunça e cobrir os furos deixados. Como um adolescente irresponsável que faz um monte de dívidas para comprar drogas e depois, diante da ameaça dos traficantes, apela para que o pai pague a conta. Com esta solução paterna, os especuladores, assim como o adolescente viciado, continuarão a se comportar como irresponsáveis. O governo americano, do mesmo modo que muitos pais, não quer saber do buraco, pretende ignorá-lo com um bom maço de dólares por cima. Desta maneira, pode-se aliviar a crise por um período curto, mas o problema não é tratado e persiste.

Não parece que Damien Hirst tenha mentido ou enganado os investidores que compraram suas obras. Ele divulgou abertamente em que condições os trabalhos foram feitos. Não fez nenhum esforço para esconder o circo especulativo em torno do seu leilão. É como se dissesse “ se é isto que o mercado quer, é isto que eu vou oferecer”.

De forma original, o artista não fez uma denúncia em seus trabalhos do mercantilismo da arte nos tempos atuais. Não realizou trabalhos que mostram a exploração dos excluídos do boom econômico ou que promovam a natureza contra a degradação causada pelo capitalismo. Ao contrário, ele seguiu a própria corrente do mercado e lançou mão das mesmas ferramentas e dos mesmos vícios para fazer uma grande paródia, uma grande tirada de sarro.

O mercado diz que artistas, no fundo, também só querem saber de ganhar seu dinheirinho, então é exatamente isto o que foi feito. Só que foram vendidos objetos de grife por milhões de libras, mas a arte ficou com o artista, em sua performance. Hirst, desta forma, questiona a própria necessidade de um objeto palpável para que se tenha uma obra de arte. A arte talvez esteja mais na atitude, na ação do artista ao criá-la e das pessoas em interpretá-la. Por fim, foi como se Hirst dissesse: vendi o que se podia e a arte não pode ser vendida.

As obras de arte, com as vanguardas modernistas e pós-modernistas, sobreviveram às tentativas acadêmicas ou universitárias de explicá-las e enquadrá-las. O leilão de Hirst pode ser um novo movimento de rebeldia que as impeça de ser captadas e anuladas pela lógica do mercado.

Em vez da denúncia, do medo, do pânico ou da depressão, Damien Hirst oferece uma ironia criativa diante das bolhas que, ao estourar, revelam que a realidade não tem um lastro seguro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

NA NATUREZA SELVAGEM OU A LEI DO DESEJO

Muitas pessoas resolvem fazer análise para descobrir o que realmente querem fazer na vida. Esta dúvida pode surgir tanto na juventude, no momento em que se deve escolher uma profissão, ou mais tarde, quando a pessoa descobre-se insatisfeita com a sua atual ocupação.

A partir de determinada época, geralmente depois dos 30 anos, passamos a nos perguntar se teríamos sido mais felizes caso tivéssemos seguido um outro caminho. Diante desta questão, muitos consideram que abriram mão daquilo que na verdade poderia ter lhes trazido a realização para se dedicar a um trabalho escolhido ou mesmo imposto por condições externas. Abdicaram do seu desejo pessoal para cumprir a vontade dos pais, atender uma necessidade econômica ou pelo medo de arriscar algo diferente. Sentem-se frustrados, acreditam que talvez seja tarde para tentar novamente e esperam que, quem sabe, os filhos poderão se realizar por eles. Podem também ficar desanimados e, com o tempo, tornar-se cínicos: a vida é assim mesmo, felicidade não existe, vivemos só para ganhar um dinheirinho para pagar as contas, quem é muito sonhador acaba se dando mal.

Quem assistiu ao filme Na Natureza Selvagem pode ter saído com a impressão descrita acima. Para aqueles que ainda não viram o filme e que preferem fazê-lo sem nada saber do enredo, recomendo que interrompam a leitura deste texto e a retomem depois de ir ao cinema, alugar o DVD ou baixar pela internet.

No filme, um jovem, após terminar a faculdade, abandona a carreira, família e bens para realizar o sonho de viver autenticamente integrado à natureza, sem as opressões que a civilização nos impõe. Para isto empreende uma viagem pelo interior dos EUA com o objetivo final de chegar ao Alasca.

Durante sua jornada, ele conhece várias pessoas que o acolhem e de alguma forma o ajudam na sua caminhada rumo ao norte. Estas pessoas, por sua vez, levam uma vida tediosa e, após conhecerem o rapaz, desenvolvem por ele um forte laço afetivo que lhes devolve a animação. Este jovem, cheio de desejo, contamina os outros na sua busca pela felicidade. Até mesmo sua família, diante da sua ausência, modifica a forma de se relacionar, tornando-se mais unida e tolerante.

Entretanto, o rapaz, após conquistar a vida selvagem no Alasca com que tanto sonhara, não sustenta o seu desejo e se dá mal. No final, sem condições de manter a sobrevivência sozinho, se arrepende, retoma o nome de família que havia renegado e tenta retornar para casa. Mas aí já é tarde, o rigor do inverno o aprisiona, e ele acaba morrendo solitário.

Uma mãe zelosa que assista ao filme poderá dizer: está vendo, pra que querer sair pelo mundo com maluquices na cabeça? O melhor lugar sempre é a segurança e o conforto da casa dos pais.

Percebemos que além de saber o que queremos na vida, qual é o nosso Alasca, o mais difícil é fazer valer a nossa escolha. Talvez, seja melhor deixar esta decisão pra lá, deixar que a vida, ou seja, que os outros nos apontem uma direção. Depois, pelo menos, poderemos ter uma desculpa, ou um culpado, por não termos encontrado satisfação.

Mas podemos tirar algumas lições de Na Natureza Selvagem que não sejam a confirmação da ameaça de que ter desejos é tolo e perigoso.

O Alasca era um ideal. A sua realidade dura era muito distante dos sonhos imaginados pelo jovem desbravador. Esta descoberta vale para qualquer coisa que elegemos como objeto de satisfação, seja uma profissão, um estilo de vida ou um produto de consumo. Toda as vezes em que as conquistamos, descobrimos que existe um espaço entre elas e o que idealizávamos. Em vez de nos frustrarmos e concluir que a felicidade não existe, poderíamos pensar que esta insatisfação permanente é a nossa condição de liberdade, a forma de manter nossas vidas animadas e de encontrar singularidade no mundo.

Se chegamos à conclusão de que determinado objeto é a nossa condição de felicidade, anulamos nossa vida em uma servidão na busca do ser pretendido. Ficamos viciados e o fim de um vício é a destruição do dependente. A sociedade classifica alguns vícios como patológicos, como o causado pelo álcool, mas qualquer coisa que consideremos a resposta definitiva de satisfação tem o mesmo efeito deletério. O problema do protagonista de Na Natureza Selvagem foi ter acreditado que o Alasca seria a sua felicidade.

O jovem pensava que sem a opressão do desejo dos pais, da sociedade e da civilização, encontraria na sua essência selvagem o seu verdadeiro querer. Trata-se de uma convicção antiga, mas muito presente na nossa cultura, de que a civilização castra nossa felicidade, de que devemos aboli-la para nos realizar. Podemos ver os sinais desta crença tanto naqueles que hoje defendem a volta de uma vida mais natural e que vêem como pecado os recursos tecnológicos inventados pela humanidade, como naqueles que cumprem esta expectativa, destruindo o planeta em nome do desenvolvimento econômico. Capitalistas e ecologistas, assim como Bush e Bin Laden, precisam uns dos outros para seguir com as suas verdades. Deveriam perceber que o risco está em eleger uma fórmula, seja ela natureba ou consumista, como resposta para o bem-estar humano. Que tanto o dinheiro quanto a natureza são ideais ilusórios.

É possível que a parte mais importante de Na Natureza Selvagem não seja o seu final, mas sim a aventura empreendida pelo personagem na busca da felicidade. Enquanto não havia alcançado o seu ideal, ele promoveu um encontro feliz que fez vivificar pessoas acomodadas em uma rotina sem alegrias. O seu desejo despertou o desejo alheio. Talvez estas pessoas, após descobrirem o final melancólico do rapaz, pudessem novamente mergulhar no tédio cotidiano.

Muitas vezes percebemos que pessoas ao nosso redor, como familiares, em determinada fase de suas vidas perdem o encanto e o entusiasmo, passando apenas a “tocar a vida”. Com o tempo, desenvolvem um processo de decadência que termina em deterioração física e social. Normalmente tentamos devolver-lhes o ânimo através de conselhos e cobranças. Algumas são diagnosticadas com depressão e tratadas com antidepressivos. Mas tanto bons conselhos quanto substâncias químicas não são suficientes para trazer uma mudança que as revitalize de forma consistente.

O que de melhor poderíamos fazer por estas pessoas é emprestar-lhes o nosso exemplo. Assim como o jovem do filme, poderíamos contaminá-las com o nosso exemplo de entusiasmo. Mas para isto temos que bancar o nosso desejo, sustentá-lo, fazê-lo valer. E qual a maneira de conseguirmos isto?

Talvez se aprendêssemos que o importante não é descobrir o que queremos, como acreditava o personagem do filme, mas que continuemos sempre a querer. Que a resposta para o que desejo seja apenas desejar.

A aposta no desejo nos possibilita seguir em frente. Se, ao contrário, colocamos nossas fichas em um objeto exterior, estaremos sempre nos deparando com a frustração, a insatisfação, a queixa e o desânimo. Mas guiados por um desejo que não tem um objeto final, podemos nos satisfazer com as coisas que vamos conquistando na vida.

Na lógica do sempre desejar, os objetos nunca são entidades estanques, prontas, acabadas. Elas demandam a nossa intervenção, a nossa interpretação, a nossa invenção. Importa mais o que você vai fazer com aquilo que escolheu do que aquilo que escolheu.

A sociedade e os pais não podem, desta maneira, ser vistos como castradores de nosso verdadeiro desejo. O que recebemos deles cabe a nós renovar. Não precisamos abandonar a civilização. Ao contrário, podemos nos utilizar dela como instrumento de nossa realização.

Se escolhemos determinada profissão, seja ela qual for, só teremos sucesso se soubermos que teremos sempre que reinventá-la a cada dia. E não desanimar com as dificuldades que vamos encontrando pelo caminho. Por saber que as coisas não são o ideal que fazemos delas, podemos ler nesta falha um convite para a nossa permanente criatividade. Deixamos de nos perceber como pecadores, como errados, como inferiores para nos entender apenas como desejantes.

Ânimo, assim como as palavras alma e psique, tem como origem a expressão sopro de vida. Desejar pode ser o nosso sopro de vida.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

LINHA DE PASSE

Linha de Passe, novo filme de Walter Salles e Daniela Thomas, estréia neste fim de semana. Fui assisti-lo com a cabeça tomada por um imaginário que havia sido formado a partir da leitura de algumas críticas publicadas na imprensa antes do lançamento do filme. Seria uma história escrita e dirigida por pessoas ricas, bem criadas e cheias de culpa, que apresentaria os pobres da periferia como vítimas inocentes. Uma resenha até afirmava haver no filme a defesa do direito dos menos favorecidos de se tornarem bandidos diante da exploração e arrogância das elites dominantes. Enfim, um obra de denúncia social, mais uma visão do mundo cão e injusto que seria o nosso Brasil. Tudo isto em um formato cafona e pretensamente poético.

Pouco a pouco, à medida que as cenas iam se seguindo, minhas expectativas foram caindo. Saí do filme com uma sensação de desmonte, de ter levado um golpe forte. Tive a impressão de ter sido confrontado com uma verdade que resistia em ver, em saber. Uma verdade já conhecida, mas coberta por uma vontade arduamente defendida de ignorá-la. A força da quebra que sofri talvez seja esta: Linha de Passe apresenta um realismo seco, sem concessões, sem máscaras, sem maquiagem, sem ilusões, sem esperanças, sem cor, sem brilho.

Não é o realismo a que estamos acostumados no cinema e que as críticas que li indicavam. Uma realidade que não conheço, que não pertence ao meu mundo, que me é exterior. Não é mostrar a pobreza, a violência, a segregação e a discriminação que as pessoas da periferia sofrem enquanto que os brancos, ricos e cosmopolitas das zonas sul e oeste desfrutam de uma bolha de felicidade em um ambiente de conto de fadas. O incômodo, ao contrário, veio ao perceber que o filme escancara uma realidade que me é interna, que sempre esteve comigo e que procurava inutilmente colocar debaixo do tapete.

Logo no começo, aparece uma São Paulo suja, cheia de viadutos e outras obras públicas mal acabas. As paisagens, o povo, as roupas, o céu, tudo é feio. O filme tem uma luz fosca e amarelada, que deixa todas as coisas e pessoas com uma cor parda, encardida. Pensei: mais uma produção que gosta de mostrar o lado degradante do país, como se fosse só isto: a pobreza. Por que não mostrar que São Paulo tem um lado rico, prédios modernos, verdadeiras ilhas do primeiro mundo? Mas o filme não se restringe apenas à zona leste. Ele mostra ruas dos Jardins e da região da Berrini. Passei a reconhecer, então, que minha vergonha da cidade está presente mesmo nos bairros ricos. As manchas marrons estão por todo lado. Por mais que se façam operações públicas de embelezamento ou de maquiagem, temos sempre os mendigos pelas calçadas cheias de lixo, os ônibus arcaicos e barulhentos lotados de trabalhadores suados, o mau gosto das construções neoclássicas, os carros blindados e com vidros escurecidos, os seguranças truculentos com seus ternos pretos e desalinhados.

O filme segue contando a história de uma família da periferia. Filhos sem pai, a mãe empregada doméstica grávida de mais um filho de pai desconhecido, sufoco econômico, total ausência de apoio governamental, sonhos frustrados. Pronto, agora o Waltinho vai mostrar seu lado humano e cristão e nos explicar como toda esta segregação e falta de amparo conduzem os pobres do país para apenas três opções: ser jogador de futebol, evangélico ou bandido. Outra expectativa que não se cumpre. O filme não é uma aula de sociologia sobre as causas de nossas diferenças econômicas. Os pobres não se revoltam e partem para o crime e a violência contra seus agressores. Os ricos não são malvados arrogantes. Ao contrário, eles também parecem, de alguma forma, miseráveis e desprotegidos. Não vemos nem vilões nem bonzinhos inocentes na tela. Não dá para reclamar ou culpar nada e ninguém pelos fracassos que se sucedem na vida dos personagens.

Quebrar expectativas a todo momento. Esta parece ser a linha que conduz o filme. Tanto para os personagens quanto para quem o assiste. Não recebemos nenhuma esperança de redenção . Ao final, saímos sem explicações que aliviem a nossa angústia, sem uma causa definitiva, sem um inimigo para eliminar e sem a expectativa de governantes que nos tragam o bem-estar. Não podemos apontar como culpados os governos ineficazes, a exploração social, a divisão de classes ou a falta de oportunidades para os jovens do nosso país. A frustração é ainda mais profunda.

De forma dura, Linha de Passe revela que o destino não torce por nós, que não há garantia de que algo de bom nos espera, nem um milagre para cair do céu. Não existe um outro oculto que cuide para que encontremos a felicidade. E esta desgraça não é exclusiva dos pobres, dos ricos ou dos brasileiros. Ela está presente em todos os seres humanos, ela é universal.

Se tirássemos as nossas ilusões, aquelas que nos fazem acreditar que somos privilegiados, de que escapamos, pelas máscaras que vestimos, do nosso desamparo no mundo, poderíamos perceber que somos iguais aos motoboys, aos bandidos, aos evangélicos, aos pobres, aos que não têm pai.

Em obras anteriores, Walter Salles e Daniela Thomas colocaram os protagonistas na estrada em busca de um pai perdido. Em Linha de Passe, nos convencem definitivamente de que a procura é inútil. A humanidade está, ou talvez sempre foi, órfã de pai. E, em nosso momento histórico atual, ainda não sabemos bem como nos virar, como continuar andando sem a crença em um outro que vele pela nossa segurança e satisfação, que nos diga o que é certo ou errado fazer.

Linha de Passe não traz respostas claras para este conflito. Mas, curiosamente, a falta de chão que tive ao assisti-lo, não me pareceu, depois de um tempo, uma experiência ruim. O filme, com o seu realismo duro, com a sua desesperança, com a sua falta de brilho, é estranhamente belo. Mesmo São Paulo, sem qualquer maquiagem, está bonita como nunca a vi antes no cinema ou na televisão. E as pessoas, ainda que com todas as suas carências, são imensamente dignas.

Mas o que mais me intrigou foi o desejo que senti quando o filme terminou. A orfandade e a solidão que compartilhava com os personagens me trouxeram um único impulso. Queria poder abraçá-los fortemente e lhes dizer: puta merda meus irmãos!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

WHO WANTS TO BE A MILLIONAIRE?

A grande promessa da globalização é transformar todas as pessoas que vivem no planeta Terra em consumidores. Os governos são eleitos e cobrados tendo em vista a sua dedicação a este compromisso. E não se trata de uma questão, como até pouco tempo se pensava, de garantir aos cidadãos de cada país as condições mínimas de sobrevivência. Os eleitores demandam de seus governantes que eles encontrem a receita para fazer com que todos sejam ricos. Que qualquer pessoa possa comprar tudo aquilo que quiser. Que não existam barreiras entre mim e o produto pelo qual anseio.

Ser rico não depende mais da vontade divina, de uma determinação que não se pode questionar. O Estado é que ficou encarregado do papel de um pai que nos dará a felicidade monetária. E, ao contrário de Deus, os governantes podem ser cobrados por isto. Podem ser trocados caso não dêem para cada pessoa as condições necessárias para que ela seja uma vencedora, uma abonada.

Tampouco importa a habilidade individual para conseguir ganhar dinheiro. Se não reúno as condições para alcançar o sucesso econômico, é porque tenho uma carência que o Estado deve suprir. Por exemplo, se sou preguiçoso ou pouco criativo, devo ter acesso a um tratamento psiquiátrico para que possa ser ativo e ter idéias brilhantes.

A cada novo levantamento das revistas especializadas em fortunas, aumenta o número de milionários no mundo. Mas enquanto forem alguns e não todos, nossa sociedade será vista como injusta e discriminatória. Por que uns podem mais que outros? A festa tem de ser para todos. Uma democracia de consumo, este é o ideal igualitário dos nossos tempos.

Mas podemos fazer um esforço criativo e imaginar como seria um mundo em que cada um pudesse comprar tudo aquilo que quisesse. Que toda vez que fosse lançado o mais novo modelo de telefone da Apple, o último esportivo da BMW ou a mais bela casa no litoral, bastaria ir até o revendedor mais próximo e buscar o seu exemplar. Que pudéssemos ir a qualquer restaurante e comer o que desejássemos. Viajar e ficar no melhor hotel que encontrássemos. É provável que viver em um mundo assim não tenha a menor graça.

Mesmo que ainda não tenhamos alcançado o maravilhoso planeta do quero logo tenho, a sua perspectiva, aliada ao sonho atual de satisfação e realização pessoal que acompanha a aquisição de produtos, já antecipa alguns efeitos deste mundo aguardado.

Viajar, por exemplo, virou um dos maiores desejos de consumo. Assim, para atender a demanda de uma massa de viajantes, todos os lugares do planeta se converteram em bens de consumo ou mercadorias. A cada dia a legião de turistas loucos para comprar uma paisagem aumenta.

Quem experimentou tirar férias recentemente pôde testemunhar que lugares antes envoltos em um imaginário romântico, como a Itália, se converteram em shopping centers abarrotados de pessoas. Filas enormes para se entrar em qualquer museu ou restaurante, atendentes estressados, engarrafamentos gigantescos, flashes para todo lado que se olhe. Os turistas de massa têm esta característica. Querem ver tudo. Estão sempre apressados e, munidos de seus celulares com câmeras fotográficas ou filmadoras, parecem ansiar por apenas uma coisa: armazenar o máximo possível de imagens. Não estão nem um pouco interessados na contemplação das obras, na experiência de viver os lugares em que se encontram. Mona Lisa é apenas uma paisagem que alguém disse ser importante ver e captar em sua câmera. A entrada da China no mercado de turismo, com seus potenciais centenas de milhões de viajantes, só deve agravar este cenário.

Mesmo os destinos menos visados não estão livres de escapar à massificação. Todos os cantos do planeta foram descobertos e vasculhados, fotografados ou filmados. Não é preciso nem mais sair de casa. Com um computador posso vislumbrar qualquer parte do planeta. Com o desenvolvimento de tecnologias que permitem programas como o Google Earth, poderemos em breve viajar, via satélite, para os lugares mais distantes da Terra e conhecê-los em detalhes.

As diversas culturas que habitam o nosso mundo perderam a sua áurea exótica e misteriosa. Parece que não existem mais culturas autênticas. Quando visitados, sejam moradores da Índia, da Mongólia ou de tribos africanas, todos parecem estar representando a si mesmos. Suas roupas são como fantasias, seus costumes, como uma encenação para os olhos e lentes. Qualquer ponto turístico do planeta ganhou este aspecto de simulacro, de representação. Praga, Veneza, Macau, tudo virou Las Vegas.

E não é uma questão de ir em busca de outras paisagens, desbravar o espaço, vislumbrar outros planetas. Marte, por exemplo, nas recentes imagens enviadas por naves e robôs exploradores, se mostra um lugar sem muita variação, monocromático e com perspectivas previsíveis. É que hoje, com os recursos da computação gráfica, é possível inventar as paisagens mais fantásticas e grandiosas.

A relação entre as pessoas também está perdendo o seu mistério. Nossos ídolos são acompanhados e exibidos imperdoavelmente, dia após dia, em revistas e sites de fofoca. Parecem até alguém da família. Programas Big Brothers e webcams espalhados pelos quatro cantos do planeta colocam ao alcance de qualquer tela a intimidade de terceiros. A divisão entre vida pública e privada deixou de existir. E o acesso às telas está cada vez fácil. Com os novos telefones celulares temos uma tela à mão em os todos os lugares em que estivermos. Podemos nos comunicar com qualquer um, em qualquer país, a qualquer momento. Assim, as pessoas nos soam, a cada dia, mais parecidas, mais banais e sem encanto.

A informação, que antes demandava esforço para ser alcançada (era necessário ler muito, ter dinheiro para isto e poder freqüentar universidades e bibliotecas), hoje está disponível facilmente via internet. Faz-se uma pesquisa em um piscar de olhos. Posso ler o livro que quiser, posso baixar e assistir a qualquer filme, ouvir qualquer música. Na globalização, no mundo em que tudo tem de ser um produto comprável, lugares, pessoas e toda produção cultural viraram qualquer coisa. E qualquer coisa nos aborrece, nos entedia.

Parece que estamos dedicando a nossa vida, governos sendo eleitos, guerras sendo realizadas, estamos matando e morrendo para alcançar algo que facilmente poderíamos perceber como uma promessa falsa de felicidade.

E o que devemos fazer? Colocar restrições ao consumo, defender a volta aos valores espirituais? Defender que as catedrais são mais belas que os shopping centers?

Não acredito que soluções do passado possam ser um bom remédio para lidar com os impasses que enfrentamos. A religião, se decaiu como forma organizadora do mundo, é porque não tem mais as condições necessárias para isto. Voltar ao passado só retardaria o surgimento de soluções eficazes. Depois, se proibimos ou limitamos o consumo, se o colocamos como um pecado, estamos mantendo a crença que consumir é igual a ser feliz. A velha história de que devemos abrir mão de uma cota de felicidade para podermos viver em harmonia. Mas este arranjo não dura muito tempo. As pessoas, na sociedade atual, querem, com todo o direito, ter acesso às felicidades prometidas.

Podemos arriscar deixar as pessoas livres para consumir o que quiserem. Logo, como uma criança empanturrada de chocolate, vamos ter que nos haver com a nossa frustração. Neste momento, sem Deus a quem nos queixar, teremos que nos responsabilizar pelo nosso desejo incompleto.

Acredito que não precisaremos chegar ao planeta devastado ecologicamente, com seus habitantes vivendo em naves espaciais, todos gordos e inativos, cercados por máquinas que atendam a todas as suas vontades, como assistimos recentemente no filme Wall-E. É possível que nosso desejo sempre em aberto nos salve antes.

Porque podemos consumir, ter tudo aquilo que se pode comprar, mas, ainda assim, não vamos ser amados como gostaríamos e, mais cedo ou mais tarde, vamos morrer. Nunca saberemos a fórmula infalível para conquistar o amor do outro e para escapar da morte. E este desconhecido, este impossível, este mistério permanente, evita que possamos transformar tudo e todos em mercadoria, em objetos que se pode adquirir.

E, para a surpresa dos aspirantes a milionários, descobre-se que o amor, esta eternidade passageira que engana a morte, pode ser encontrado quando abandonamos a matemática de perdas e ganhos.

No fim, depois da epidemia consumista e de toda frustração decorrente, talvez nos reste apenas o olhar de alguém ao lado.

sábado, 23 de agosto de 2008

O ESPORTE FAVORITO DAS MULHERES

Uma piada conhecida diz que o esporte favorito dos homens é o futebol. E o das mulheres? Não, não é o vôlei. É o caratê. O cara “tê” cartão de crédito, carrão, grana no banco. Outra piada afirma que quem gosta de homem é gay. Mulher gosta é de dinheiro.

Apesar de taxá-las de interesseiras, nunca vi nenhuma mulher ficar indignada ao ouvir estas anedotas, como ocorre quando o alvo da brincadeira é a capacidade intelectual delas. Normalmente elas comentam que isto é uma bobagem, mas, no final, soltam um riso contido, porém malicioso e ameaçador, como quem, no fundo, concorda com tais afirmações.

É como se elas soubessem que apesar da aparência machista e preconceituosa contra as mulheres, o alvo de tais crenças, os grandes prejudicados, na verdade são os homens. Elas, talvez de maneira intuitiva, percebem que, assim, aprisionam os homens ao imaginário de que eles só valem pelo que têm. Deste modo, eles se sentem avaliados em uma escala que os qualifica de menos ou mais homem. Ser homem não é uma condição estanque e determinada, mas varia de acordo com o que se tem na vida.

Para conquistar uma mulher e se sentir homem, é preciso que eu tenha o corpo sarado, muito dinheiro ou sucesso. E se uma aquisição não for suficiente para a conquista, tenho que tentar outra. Os homens estão sempre querendo descobrir o que as mulheres querem que eles tenham para que elas possam se interessar por eles. Diante desta dúvida, estão sempre achando que seu caminhãozinho é insuficiente.

Podemos nos perguntar se as mulheres também não vivem o mesmo dilema, se elas não pensam no que devem ter para conquistar um homem.

No passado, o ideal de realização de uma mulher era encontrar um bom marido, ter filhos e criá-los com todos os cuidados possíveis. Para arrumar o seu homem, a mulher tinha de possuir os predicados de uma boa mãe e principalmente ser de boa família, o que, em outras palavras, queria dizer quem era o pai dela. Uma mulher era sem posses. Tudo o que tinha pertencia aos seus homens: pais, maridos, filhos. O sobrenome, os bens materiais, o sustento. Elas vivam não para ter ou conquistar, mas para cuidar dos outros. Se fugiam deste modelo e buscavam ganhar seu próprio dinheiro e fazer a sua própria vida eram, então, classificadas como putas. Talvez as piadas acima busquem isto. Dizer que as mulheres, ao serem interesseiras, são putas.

Hoje as mulheres não se importam tanto em ser associadas às meninas da vida. De alguma forma, até estimulam isto fazendo cursos de strip-tease ou de pole dance. Na sociedade em que vivemos, os papéis entre homens e mulheres estão cada vez mais parecidos, com mulheres desempenhando as mesmas funções profissionais que os homens, às vezes ganhando mais do que eles. Neste mundo, também as mulheres se perguntam sobre que atributos devem ter para conquistar o outro.

E toda promessa de realização que o mercado oferece tem exatamente este estímulo. Tenha juventude, beleza, saúde e sucesso adquirindo os nossos produtos. Assim, poderá conquistar a pessoa que ama e ser feliz.

Porém, repetimos esta receita de sedução e não conseguimos alcançar o resultado prometido. E, quando não conseguem fisgar a pessoa que querem, homens e mulheres caem em pensamentos obsessivos sobre o que lhes faltou para que desse certo o encontro. Ficam confabulando sobre o que o outro teria para conseguir conquistar a pessoa que você quer. Fantasiam um ladrão cheio de atributos, perfeito e pleno. E sentem-se menos homem ou menos mulher. Acreditam-se destinados ao fracasso amoroso, tendo que se contentar com as sobras que lhes aparecem. Na lógica do ter para ser amado, ficamos sempre com a sensação de que estamos aquém da felicidade.

Os atributos, o que nós temos, podem ser uma isca para atrair quem desejamos. Mas eles só funcionam enquanto estão distantes e ainda envoltos em uma atmosfera enigmática. Quando nos aproximamos da pessoa idealizada, percebemos que suas posses não eram bem o que queríamos, que elas não são suficientes para nos despertar paixão. Nada mais broxante do que alguém que fica o tempo todo exibindo para o outro as suas conquistas, crente que isto o fará amado. Quem é assim, quem acredita que seu valor está em seus pertences, só atrai aqueles que, no fundo, espera: pessoas interessadas apenas em usufruir ou, se possível, tomar os seus bens. Amor, paixão, nem pensar. Se perdem as coisas que têm, desaparecem, também, os que lhe são próximos. Então, vivem em constante paranóia, sempre desconfiados da real intenção alheia, sempre com a expectativa da perda.

No final, aqueles que mantêm a crença do ter para ser amados descobrem, indignados e surpresos, que a pessoa querida escolheu um outro “despossuído”. Como pôde me trocar por alguém mais pobre, burro, velho ou feio? Passam a desqualificar a amada dizendo que ela não os merecia, que agora descobriram que ela não prestava. Pura mentira. Não desistem da sua crença e insistem em descobrir a receita de sucesso do outro: ele deve ser bom de lábia ou de cama.

Os devotos do ter para ser feliz no amor passam a vida na insatisfação amorosa. Consideram que as pessoas com quem mantêm relacionamentos não são seus verdadeiros amores, e que ainda vão encontrar a sua cara-metade. Na velhice, ficam com a sensação de que determinada pessoa que perderam teria sido o seu grande amor, que deixaram escapar a oportunidade de ser feliz que a vida lhes deu. Mas, talvez, encontrem o amor desperdiçado depois da morte no paraíso. Neste modelo, só se pode ser feliz quando há uma distância permanente da pessoa desejada. Ou será num futuro que nunca vem ou num passado para todo perdido ou num além imaginário.

Mas poderíamos prestar mais atenção aos nossos próprios sentimentos e nos perguntar quando é que nos interessamos por alguém, como foi que ficamos apaixonados e amamos alguém. Será que foi pelo que esta pessoa tinha?

Quando estamos interessados em uma pessoa que nos parece cheia de qualidades, como torcemos e ficamos felizes quando encontramos pequenos defeitos ou deslizes nelas. Buscamos insistentemente uma falha, uma cicatriz, um cabelo branco, alguma coisa fora do lugar. Não amamos pessoas perfeitas ou ideais. Não amamos deuses ou deusas. Adoramos perceber uma carência, algum tormento ou mal-estar no outro.

Mas, aí, jogamos uma armadilha. Apontamos para a pessoa a falha que descobrimos nela. Se ela, deste modo, reage séria e envergonhada, se fica querendo nos agradar dizendo que vai se corrigir, cai automaticamente na lógica do ter, do sentir-se menos. Neste momento, o encanto se quebra. Entretanto, se respondemos de um outro lugar, se assumimos a falha, se não nos acanhamos ou até brincamos com ela, a pegadinha não funciona. Ficamos, assim, livres e sensuais aos olhos alheios.

Homens e mulheres são atraentes e podem amar se conseguem responder a pergunta do que eu sou não pelo que tenho.

O problema de dizer quero que gostem de mim pelo que eu sou e não pelo que eu tenho, é que nunca conseguimos responder com um mínimo de precisão a esta pergunta: quem eu sou? Toda vez que tentamos respondê-la, caímos na armadilha de nos definir pelo que temos. Qual o nome que tenho, qual a profissão ou quais qualidades ou defeitos possuo. E, em nenhum momento, nos convencemos da resposta. Fica sempre parecendo que algo ficou de fora, que não é bem isto. Nesta hora, poderíamos compreender que o mais próximo que chegamos da resposta ao que eu sou é percebendo que somos um enigma para nós mesmos. Que nenhum nome ou qualificação dá conta de nos explicar. De que nenhuma posse nos completa e nos define, pois, se não sei exatamente o que sou, também não sei com precisão o que quero. Desta maneira, conseguimos escapar do eu sou pelo que eu tenho, por aquilo que me é exterior.

Mulheres lidam melhor com a idéia de poderem ser não pelo que têm. Já os homens ficam mais perdidos e angustiados. Acham que, desta forma, sua masculinidade está em risco. Consideram que é melhor ser menos homem no modelo do ter do que não ser homem algum. Seriam mais livres e mesmo mais masculinos se arriscassem acreditar que ser homem não é algo definido, que demanda invenção. Que não são só as mulheres que têm de ser enigmáticas para conquistar um homem. Homens, também, têm de ser indefiníveis para despertar o amor de uma mulher. Têm que ter falhas, buracos, alguma inocência, alguma infantilidade.

Não tendo uma resposta precisa para o que somos, conseguimos fugir de qualquer tentativa de nos fazer objetiváveis, de sermos aprisionados em uma definição dos outros e perdermos a nossa liberdade e nossa capacidade de sedução. Se podemos nos dizer humanos, se temos algum valor, é por termos um desejo sempre presente. Do contrário, viramos meros objetos desprezíveis.

E o encontro feliz entre duas pessoas só ocorre se as duas se permitirem estar e perceber o outro no lugar de enigma.

Afinal, o que é amar, se não a possibilidade de vivermos uma experiência misteriosa, que nos desloque da realidade, da norma, do convencional. Um encontro que, assim, nomeamos de mágico.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O MÉDICO-DEUS

Na semana passada, li no jornal Folha de S. Paulo, dois comentários feitos por dois colegas médicos que me provocaram algumas questões.

O primeiro foi feito pelo ministro da Saúde que, feliz com a diminuição no número de acidentes de trânsito após a vigência da lei seca, afirmou que punição funciona mais que educação. Concluiu dizendo que a sociedade precisa de um pai, no caso, o Estado.

Nos últimos textos que postei, tentei expor algumas razões pelas quais acredito que o Estado é completamente incapaz para administrar a liberdade das pessoas, só entendendo o lugar paterno por meio do autoritarismo. O Estado é pai porque detém as forças de repressão, pode lhe dar uma cacetada caso você faça algo que ele julgue errado. Não é pai porque tem a sabedoria para manter a boa convivência entre seus filhos. Este conhecimento, sabemos, é impossível. Então, só restam a ameaça de punição e o medo. E esta parece ser a conclusão do ministro sobre como conseguir civilidade entre as pessoas.

Não me assustaria se, diante do exemplo de tamanha autoridade, registrássemos um aumento no número de pais que castigam fisicamente seus filhos em nome da boa educação. Quanto retrocesso. Como querer enfrentar os problemas de hoje com soluções do passado pode nos ser prejudicial ou mesmo fatal. Ministro, não é de pai que precisamos, é de responsabilidade. E ela só vem quando sabemos que temos que nos virar sozinhos na vida. Que nenhum outro nos garante segurança ou felicidade.

O segundo comentário foi feito por um professor de medicina da USP. Ele afirmou que quando consegue curar um paciente com câncer e, assim, salvar-lhe a vida, sente-se como um Deus. Tem, então, que se beliscar para se perceber humano.

É provável que o professor tenha feito esta declaração com a intenção de demonstrar humildade. Mas muitos colegas e mesmo pacientes têm fé nesta crença: o médico-Deus. E, em vez de nos beliscar para nos vermos como humanos, talvez bastasse a nós médicos apenas ser um pouco mais críticos.

Não acredito que médicos salvem vidas. A batalha contra a morte é, desde sempre, perdida. Mas o exercício da medicina pode prolongar a vida e promover alívios para o sofrimento. E estas possibilidades, por si, já valem uma vida.

Mas o problema dos médicos-deuses é criar a expectativa de que a medicina poderá nos livrar de todos os sofrimentos e da morte. Eles difundem a crença de que é possível um conhecimento total sobre o corpo humano e aquilo que o condiciona. Se algo deu errado, foi por falta de conhecimento. Não há lugar para o desconhecido, para o acaso na matemática dos médicos infalíveis. Eles opõem conhecimento total à ignorância e vida à morte. Uma derrotará a outra.

As modernas técnicas de avaliação do corpo humano, a possibilidade de diagnósticos mais precisos realizados por máquinas cada vez mais sofisticadas (e caras) e a promessa de uma prática totalmente baseada em evidências numéricas científicas alimentam ainda mais a ideologia de uma medicina que eliminará o desconhecido e a morte.

Médicos, como no passado se ocuparam os sacerdotes, estão encarregados de dizer o que é certo ou errado para se ter uma vida feliz. Não fume, alimente-se bem, faça exercícios: estes são os mandamentos do homem moderno. Uma vida boa é uma vida saudável, regrada. Só que, agora, não é a autoridade religiosa que dita as regras, mas médicos que se dizem portadores das verdades científicas.

O médico-Deus sustenta a idéia de que só seremos felizes se acabarmos com todas as dores e com a morte. Como isto é impossível, seus pacientes estão condenados a uma vida insatisfeita, esperando uma felicidade que nunca virá.

E apesar de todo apelo à saúde, de que se sigam corretamente todas as recomendações dos doutores do bem-viver, as pessoas continuam e continuarão a adoecer, novas doenças a surgir e mortes a ocorrer. E, se não existe acaso, então a culpa por isto é da medicina e dos médicos. Se não o têm, deveriam ter o conhecimento necessário, cumprir a promessa feita.

Deste modo, o exercício diário da medicina tem se tornado cada vez mais estressante para os profissionais. Se acaso algo não der certo, poderei ser processado. A responsabilidade está toda com o médico. Não se informa aos pacientes e nem à sociedade que todo tratamento tem uma dose de risco, de efeitos indesejáveis desconhecidos, que mesmo o médico mais estudado e habilitado não está livre de ter insucessos e que os dados científicos não são verdades definitivas. Um acaso que a própria estatística considera, ainda que de forma atenuada, uma vez que ele não pode ser dimensionado com precisão. Provavelmente se tema que estas informações afastem a clientela e diminuam os ganhos.

Os pacientes não querem saber que têm a sua cota de responsabilidade ao escolher determinado médico e determinado tratamento. Se usam serviços públicos de saúde, são responsáveis pelos políticos que elegem. No fundo, querem, também, ignorar o desconhecido, o acaso. Se der errado, tenho sempre alguém para culpar. E como os médicos não são deuses, não são senhores do destino alheio, em algum momento vão falhar e serão, então, denunciados. Como no caso do ministro em relação aos motoristas, acredita-se que médicos só funcionem bem se estiverem sob constante ameaça de punição. Um advogado ao lado talvez venha a identificar mais um médico do que o velho estetoscópio no pescoço. Prefere-se pagar este preço a frustrar a expectativa divina dos clientes.

Vender a idéia de um médico-Deus é vender uma ilusão. E o destino de toda ilusão é ser desmascarada. No mundo das doenças e seus tratamentos , promessas enganosas há muito são devidamente nomeadas: charlatanismo. Um medicina sustentada em crenças ilusórias pode estar condenada a desaparecer.

Mas a medicina pode seguir outro caminho, um que lhe seja mais próprio. Podemos fazer valer uma afirmação que desde os tempos de estudantes de medicina ouvimos e que erroneamente nos parece desgastada e algo ridícula: A medicina é uma arte. Em vez do médico-Deus, o humano e falível médico-artista.

O médico-artista, mesmo que realize cirurgias ou outros procedimentos, é clínico por excelência. Acredita que cada caso é um caso (outra importante frase do repertório médico que necessita ter seu valor posto em prática), que o dia-a-dia e a experiência clínica é o que contam na hora de tomar uma decisão.

No futuro, ao contrário do que se imagina, é provável que os médicos mais necessários e modernos sejam aqueles habilitados na prática clínica e não os pesquisadores das últimas evidências científicas ou os que tenham acesso aos mais avançados e caros recursos tecnológicos.

Se acreditarmos que um bom tratamento deve-se principalmente à quantidade de informação científica armazenada, à capacidade de cruzar informações e à precisão matemática na realização de procedimentos, os médicos podem, assim, ser substituídos, com muito mais eficácia, por computadores e robôs.

O médico-Deus quer descobrir um padrão geral, uma receita infalível de como curar. E os pacientes, nestas condições, são vistos como números equivalentes, como probabilidades gerais e não como casos particulares. Mas, no fundo, o médico-Deus não tem valor. O valor está no conhecimento, nas fórmulas prontas, e qualquer um pode ter o mesmo conhecimento, desde pacientes, que podem se informar via internet, até uma máquina. Médicos-deuses são descartáveis.

O médico-artista tem uma sabedoria sobre o singular. Sabe apostar em um tratamento específico para cada paciente, a cada momento. Ele usa da sua experiência e do conhecimento adquirido mas inclui também o acaso, o desconhecido. Reconhece que uma decisão envolve algo que está fora da razão, uma sensibilidade, uma intuição. Quando obtém sucesso, ele não sabe explicar exatamente o porquê disto. Tem o entendimento de que o mesmo tratamento para outro paciente com um diagnóstico igual e nas mesmas condições pode não funcionar.

Em vez de temer e se acabrunhar frente ao impossível da morte e de tudo saber, o médico pode fazer do acaso um aliado. E é possível que, apesar de surfar sobre o desconhecido ou talvez até por isto, ele, para a nossa surpresa, possa acertar mais do que o médico medroso que quer uma receita do que é certo fazer.

O médico-artista não fica na defensiva, tem prazer e alegria pela clínica, pelo exercício diário da medicina e pelo contato com os pacientes.

Assim como os artistas da pintura, da literatura ou da música, o médico cria algo que não existia no mundo. Ainda que de forma precária e temporária, ele realiza um intervenção que muda um rumo que parecia determinado pela natureza. Inventa uma novidade ao remediar um sofrimento, tratar uma doença, prolongar uma vida. Mais do que salvá-la, médicos podem emprestar à vida uma beleza fugaz.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

POR QUE O ESTADO NÃO CUIDA BEM DAS PESSOAS E O EXEMPLO DE ROSKILDE

O Festival de Roskilde, na Dinamarca, assim como o de Glastonbury, no Reino Unido, é considerado um dos maiores eventos de música da Europa. Este ano, na companhia de outras 70 mil pessoas, tive a oportunidade de acompanhá-lo no início de julho.

Além da satisfação de poder assistir a ótimos shows, de rock às últimas novidades em música eletrônica, com atrações de vários países, incluindo a brasileiríssima Orquestra Imperial, alguns fatos me chamaram a atenção.

Ao contrário do que estou acostumado a ver em eventos semelhantes no Brasil, não encontrei legiões de seguranças de terno, gravata, óculos escuros e comportamento hostil vigiando para que as pessoas não se excedessem em sua diversão. Não houve revistas detalhadas para a detecção de armas ou outros objetos proibidos. O festival tem pouquíssimas regras ou restrições. Na verdade, somente uma recomendação: cuide de si e, se possível, de quem estiver perto de você.

E este era o espírito que a própria organização do festival procurou passar. Em vez de seguranças, havia gentis voluntários da cidade próxima, homens e mulheres, jovens e idosos. Eles cuidavam apenas para que as pessoas tivessem as informações necessárias, como a localização de determinado palco. Alguns observavam a multidão tentando perceber aqueles que, aparentemente, tinham exagerado no consumo de álcool ou outras substâncias para, a princípio, lhes oferecer água. Havia, também, médicos e enfermeiros que percorriam o evento, tentando detectar alguma eventual necessidade de seus serviços. Se encontravam alguém deitado no chão, por exemplo, se abaixavam tranquilamente e perguntavam se estava tudo bem. Sendo a resposta positiva, continuavam sua caminhada. Não se tinha a sensação, em nenhum momento, de se estar sendo vigiado e nem de que, caso algo de errado fosse feito, alguém viria para lhe punir. O outros não o ameaçavam, apenas se divertiam e cuidavam de você.

E com toda esta liberdade, para grande espanto dos defensores da tese de que para se ter segurança são necessários vigilância e controle rigorosos, não vi uma briga sequer, nem soube de roubos ou outros tipos de agressão, nem de mortes por overdose ou por afogamento no grande lago que ficava no meio do festival. Não assisti a qualquer comportamento minimamente hostil, como alguém levantando a voz para outro que eventualmente tivesse furado a fila. Até os banheiros eram inacreditavelmente limpos para um evento com dezenas de milhares de pessoas. Era possível perceber, a todo momento, uma preocupação de não deixar que a minha diversão fosse prejudicial para o outro e, de forma inversa, uma tolerância para que a diversão alheia não representasse um problema para mim. E estes cuidados de forma alguma comprometeram a alegria dos participantes.

Pode-se argumentar facilmente que esta realidade de responsabilidade individual ocorre porque a Dinamarca é um país com uma população altamente civilizada, educada, rica e economicamente igualitária. O preço disto seria uma vida tediosa com altos índices de suicídio.

Quanto à segunda afirmação, sobre como é chato viver em um país de pessoas cordiais entre si, não sei se posso concordar, até pelo vi em Roskilde: os dinamarqueses se mostraram muito mais animados e mesmo mais criativos no figurino do que muitas platéias do nosso país tropical. Quanto aos índices de suicídio, pelo que sei, não existe consenso se eles seriam realmente maiores nos países nórdicos. Pode ser mais um exemplo do antigo mito que associa civilização à tristeza ou alegria ao caos.

Em relação à crença de que os dinamarqueses se comportam de forma responsável, não necessitando serem tão controlados como os habitantes das regiões quentes e pobres do planeta , por terem um maior desenvolvimento econômico e educacional, acho importante fazer alguns comentários.

Se não levarmos em conta os antigos e desacreditados preconceitos sobre raça superior ou clima mais adequado, talvez a crença acima ainda se apóie em argumentos difíceis de se sustentar, a não ser dogmaticamente. O que fica subentendido é que pobres e pessoas de baixo nível escolar precisam de mais vigilância, de mais polícia.

Não convence tampouco a idéia de que os europeus sejam mais civilizados porque têm séculos de desenvolvimento e nós começamos nossa história recentemente. Assim estaremos sempre atrasados pois eles serão sempre mais velhos do que nós. Além disto, nossos antepassados, sejam eles africanos, índios ou europeus, estão no mundo há tanto tempo quanto os de qualquer outro lugar. E países até mais novos que o Brasil, como a Nova Zelândia, confiam mais que nós na liberdade de seus cidadãos. Só podemos sustentar o pensamento de um maior desenvolvimento cultural se acreditarmos que uma cultura é superior à outra.

Aceitar que dinamarqueses, ao contrário dos brasileiros, possam ir a shows sem seguranças autoritários ou mesmo usar o metrô sem ter que passar por catracas de controle da compra de bilhetes, é assumir que nós, brasileiros, somos inferiores e mais selvagens que os descendentes dos vikings.

Funcionamos assim, maltratados pelos governantes e ninguém comenta o porquê disto, como se fosse uma verdade que todos acreditamos mas não podemos dizer publicamente. Nos organizamos e vivemos tendo como base os piores preconceitos. Verdades que não se sustentam diante do menor debate inteligente.

Mas a realidade comprovaria o preconceito velado. O brasileiros adoram burlar as leis. Tire as catracas de controle do metrô para ver quantas pessoas pagariam a viagem. Não coloque seguranças abrutalhados nas festas para ver quantas brigas ocorreriam.

Não temos razão última nenhuma para acreditar na menor civilidade dos brasileiros a não ser a nossa vontade cega de acreditar nisto. E a nossa expectativa gera a realidade. Se achamos que somos selvagens e bárbaros, assim nos comportamos. Com medo dos brasileiros potencialmente criminosos, cercamos nossas casas de cercas elétricas e câmeras . A paranóia demanda um outro que confirme a expectativa de violência. Quanto mais nos fecharmos dentro de muros, seguranças e carros blindados, mais bandidos estaremos esperando.

Da mesma forma dinamarqueses, dos quais se espera civilidade, podem fazer festivais de música sem controle policial e, ao mesmo tempo, sem violência.

Na clínica, esta condição é facilmente percebida. Pais que tratam seus filhos como irresponsáveis, que os cercam de cuidados e vigilância, acabam tendo filhos que se comportam exatamente dentro desta expectativa. Crescem inseguros, precisando sempre de um outro que os controle e diga o que é certo ou errado. Se deixados sozinhos, acabam fazendo bobagens. Os filhos se tornam eternas crianças dependentes.

Não seria esta a expectativa criada pela onda recente de maior controle estatal e tolerância zero? Que as pessoas são irresponsáveis e precisam da tutela do Estado? Somos crianças arteiras em potencial, prontas a fazer besteiras caso o Estado não nos monitore.

Mas por que devemos acreditar que o Estado é uma entidade adulta e esclarecida pronta a nos proteger de nosso descontrole? Os que clamam pelo rigor estatal deveriam lembrar que o Estado é um organismo abstrato que, na prática, é composto por pessoas sujeitas às mesmas imperfeições e vícios que nós. De onde tiramos a idéia que policiais ou políticos possam estar mais preparados que nós para cuidar de nossa liberdade?

Se abrimos mão da responsabilidade pela nossa liberdade individual e a entregamos para o Estado, o que vamos encontrar é uma maior corrupção, truculência e violência por parte deste. É o efeito colateral das leis secas. Mas o maior problema deste tratamento para a liberdade do mundo de hoje é a sua falta de eficácia ao longo do tempo.

O remédio das leis secas tem como princípio ativo a idéia de que para nos controlarmos precisamos de proibições e de um outro que nos vigie. É um remédio antigo contra o qual já se desenvolveram vírus altamente resistentes. É possível, até, que o vírus se alimente e se fortaleça utilizando-se do próprio medicamento.

A história tem mostrado a falência da crença em um outro que nos sirva de modelo do que é certo ou errado, de um outro que nos proteja, nos controle e nos puna caso nos desviemos do melhor caminho. Faliu a idéia de representantes de Deus, de papas, de reis e outras autoridades sábias e infalíveis. De quantos nazismos ou stalinismos precisamos para nos certificar disto? No que deu a promessa de segurança internacional das guerras contra o mal promovidas pelo governo Bush? Precisamos logo nos convencer de que estamos sós para cuidar de nossa liberdade. A responsabilidade pelo que fazemos, daquilo que dá certo ou errado em nossas escolhas, pertence apenas a nós mesmos. A humanidade é uma família sem pai. E, talvez, seja este o seu momento de maturidade.

Voltando ao exemplo dinamarquês, alguém pode argumentar que na Dinamarca, com toda a sua civilidade, também se aplicam leis restritivas à liberdade individual, como penas severas para motoristas alcoolizados.

Concordo. Mesmo países que antes defenderam a liberdade, como os EUA, hoje se fecham no medo, com cada vez mais limitações internas e também ao que vem de fora. Americanos desconfiam dos muçulmanos, os europeus desconfiam dos imigrantes. E ambos temem o descontrole de seus cidadãos, principalmente o dos mais jovens, e pedem um maior rigor do Estado. E corremos o risco de receber, por absoluta idiotice, a mesma cacetada na cabeça que nos foi dado num passado não tão distante.

O Brasil já está calejado na convivência com um outro diferente. Não existe a menor homogeneidade entre os brasileiros. Já experimentamos interpretar isto pelo viés da paranóia, de que devemos sempre desconfiar do outro. Não deu certo. Com todos os muros e truculência policial, vivemos perseguidos pela violência. A questão não é aumentar ainda mais os muros, a vigilância.

Podemos tomar a dianteira e, em vez de um país atrasado, usarmos a nossa experiência para demonstrar ao mundo a possibilidade de confiar na liberdade do outro que nos é diferente. De aceitarmos que o Estado não sabe o que fazer com a liberdade que entregamos a ele. Que é melhor, como na recomendação de Roskilde, que cuidemos nós de nós mesmos.

Sei que está fora de moda, mas tenho uma utopia. Que, de repente, de forma meio desapercebida, no Brasil, as pessoas comecem a abrir mão de cercas e câmeras, de vidros escurecidos nos carros e de seguranças públicos ou particulares. Quem sabe alguns cheguem à ousadia de caminhar sem medo pelas ruas. Se não esperamos bandidos ou adversários, para nossa surpresa, podemos encontrar amigos em nosso desamparo de um outro que nos proteja.