segunda-feira, 7 de abril de 2008

REMÉDIOS PARA UM “PLUS A MAIS”

A revista Veja, em uma recente edição, relatou a crise por que passa a indústria farmacêutica, pela falta de novos medicamentos que possam substituir, com igual rentabilidade, os atuais “supermedicamentos” cuja patente termina nos próximos anos. A matéria não esclarece os motivos pelos quais não podemos esperar o mesmo entusiasmo com novas medicações como o verificado nos últimos anos, por ocasião do lançamento de “modernos” antidepressivos, remédios para a impotência ou para se abaixar o colesterol. A revista relata apenas que, a cada ano, aumenta o investimento necessário para o desenvolvimento de um novo remédio, sendo esta quantia, hoje, por volta de 900 milhões de dólares. Conta, também, que o tempo para que um produto chegue ao mercado é cada vez maior. Com isto, o período de comercialização, antes do término da patente, tem diminuído, obrigando a indústria a batalhar por preços elevados para seus novos medicamentos. Em um primeiro momento, pode parecer difícil acreditar que o boom farmacológico esteja perdendo força, tendo em vista o aumento da demanda por medicamentos. Não a antiga demanda por tratamentos para as doenças tradicionais como o câncer, doenças degenerativas ou infecciosas. Normalmente, condições que, se não tratadas, trariam um prejuízo crescente ou levariam à morte a pessoa acometida. Esta demanda tem mantido um crescimento regular. A nova e imensa demanda por medicamentos, formada nos últimos anos, tem como alvo situações que até pouco tempo não eram consideradas como passíveis de tratamento pela medicina. Áreas antes dominadas por curandeiros ou por produtos que prometiam efeitos milagrosos. Podemos incluir nessa lista medicamentos que façam perder peso de forma consistente e permanente, remédios que promovam o crescimento de cabelos em carecas, remédios que aumentem o tempo até a ejaculação, remédios para incrementar a libido em mulheres, remédios que permitam que se trabalhe mais horas sem perda de concentração, remédios que aumentem a capacidade de se guardar informações ou que apaguem da memória lembranças indesejáveis, remédios que evitem os efeitos físicos do envelhecimento, remédios que façam os cabelos ficarem mais claros ou mais lisos, remédios que mudem a cor dos olhos, remédios para dores crônicas ou mesmo remédios para se parar de fumar, beber ou de se usar drogas. Podemos dizer que este novo mercado visa a oferta de medicamentos para condições que antes não eram consideradas doenças mas que, posteriormente, foram associadas a riscos para a saúde, como a obesidade e a depressão. Entretanto, a grande procura por estas drogas é a de ávidos consumidores que querem perder uns “quilinhos a mais” ou a daqueles que buscam afastar todo e qualquer sofrimento e tristeza de suas vidas e não necessariamente a de obesos mórbidos ou a de deprimidos graves. O enorme mercado, e a industria sabe disto (basta fazer um levantamento do número de usuários de medicamentos para impotência sexual que não apresentam nenhum comprometimento físico que justifique tal uso), é formado por pessoas que não estão doentes mas que buscam melhorar o seu desempenho ou a sua performance individual. Enfim, a demanda é por remédios que ofereçam “um plus a mais”. Os remédios para o tratamento das doenças tradicionais permitem que os doentes possam recuperar uma condição de saúde perdida. Têm o efeito de levar a pessoa de um estado de menos saúde para um estado de normalidade. Os remédios “plus a mais”, trazem a esperança de que uma pessoa saudável possa ficar ainda melhor. Seria o equivalente farmacológico das cirurgias plásticas. Sem entrar na questão do problema que esta nova demanda traz para o conceito de normalidade e saúde, pode-se afirmar que este é um mercado que de forma alguma parece estar em regressão. Então, por que a industria farmacêutica não tem conseguido oferecer produtos para atender com rapidez a esta demanda? Quem acompanha com freqüência o noticiário deve ter se deparado com relatos de medicamentos que, subitamente, são suspensos pelas autoridades reguladoras de saúde, seja no Brasil , seja no exterior. Normalmente, estas suspensões estão ligadas ao surgimento de evidências que trazem dúvidas sobre a segurança de uso de determinados medicamentos. Isto, por exemplo, ocorreu, recentemente, com o novo antiinflamatório Vioxx. Avaliações mais detalhadas dos estudos com essas drogas acabam por descobrir efeitos colaterais potencialmente graves e que não foram considerados por ocasião da autorização de comercialização. Provavelmente, este maior rigor esteja relacionado ao medo tanto da indústria, quanto das autoridades reguladoras, dos milionários processos movidos por pessoas que se sentem prejudicadas pelo uso de determinada medicação. O risco de suspensão ou mesmo de restrição de uso de um medicamento, além de uma maior possibilidade de ter seus novos medicamentos não aprovados por conta de um crescente rigor na avaliação de efeitos colaterais graves, talvez ajude a entender os maiores custos e prazos para o desenvolvimento de novos produtos. A indústria teve que ser mais criteriosa nos testes de segurança com as suas novas drogas. Este “pente-fino” faz com que muitas moléculas que pareciam promissoras em seus testes iniciais, acabem “morrendo na praia” ao apresentarem problemas de segurança nos testes clínicos. Com isto, o número de novas drogas aptas para entrar no mercado tem se tornado aquém da imensa demanda e do robusto investimento feito pelas empresas. Corre-se o risco de que a intensificação deste cenário leve, em um futuro não muito distante, a um aumento ainda maior nos custos para o desenvolvimento, quanto no preço final de novas medicações, a um menor investimento na criação de novas moléculas e, por fim, a uma escassez na oferta de novos medicamentos. Assim, teríamos um prejuízo não só na oferta de remédios para se melhorar a performance individual, mas também na de medicamentos para o tratamento das doenças tradicionais. Pode-se tentar entender como se chegou a tal situação, a partir da invasão da vida cotidiana pela medicina, que a demanda por medicamentos “plus a mais” tão bem exemplifica. Se a medicina, aliada à indústria farmacêutica, passou a dizer que determinadas condições e problemas rotineiros devem ser alvo de tratamento médico, esqueceu-se de dizer que isto teria um custo além do financeiro. Um conceito aprendido por qualquer estudante de medicina é que todos os remédios têm efeitos colaterais. Que toda medição tem, além de seus efeitos conhecidos, incontáveis outras ações desconhecidas. Mesmo um inocente copo de água com açúcar pode causar efeitos indesejáveis. Este conceito, ao trazer uma orientação para a prática médica, estabelece uma ética. Não existem remédios que são “mísseis com precisão cirúrgica” (sabe-se, também, o quão mentirosa e cínica é esta descrição em seu uso bélico). Considera-se, mesmo, que uma determinada substância só é remédio se tiver efeito colateral. Do contrario é enganação, charlatanismo. Esta ética foi omitida na invasão da vida cotidiana pela medicina. Talvez, este avanço só tenha sido possível porque se difundiu a crença que os novos medicamentos estavam livres de trazer prejuízos importantes e inesperados para seus usuários. No casamento da medicina com o mercado, prevaleceu a normas do último. Os medicamentos passaram a ser oferecidos como as empresas comercializam seus demais produtos. A divulgação é sempre focada nos benefícios, com frases de efeito e nunca nos possíveis prejuízos. A bulas, com as suas advertências, não se diferem muito das informações sobre precauções no uso de outras mercadorias, como consumir antes do prazo de validade, manter longe do alcance de crianças, etc. Enfim, se todos os cuidados forem tomados, não há como dar errado. Não existe espaço para o desconhecido que a lição médica formula sobre o efeito dos remédios, o fato de que nenhuma bula é capaz de conter todos os riscos. Se houvesse ocorrido o movimento contrário e a medicina, na sua união com a indústria, a tivesse contaminado com a sua ética, é possível que as empresas farmacêuticas não estivessem, agora, sendo objeto de processos de indenização e alvo de desconfiança. Não sei se assim, alertando sobre riscos potencialmente elevados e desconhecidos dos medicamentos, a indústria teria uma perda importante no número de usuários de seus produtos. Mas os consumidores seriam mais responsáveis ao saber que seu desejo tem um custo pessoal, além do monetário. A indústria farmacêutica não ficaria no lugar de inescrupulosa caçadora de lucros e os seus consumidores no lugar de vítimas inocentes. Talvez, não estaríamos vivendo a possibilidade de uma paralisação na oferta de novos medicamentos. Provavelmente, até mesmo muito da frustração e dos danos ambientais causados pela grande consumo atual pudessem encontrar outra direção se esta ética, que diz que nossas intervenções na natureza têm efeitos que nos escapam, infectasse o mercado. Acreditar que se pode melhorar e desejar mudar são legítimas necessidades humanas que nunca se esgotam. Buscar remédios para isto nos é fundamental, necessário. Entretanto, se esquecemos da ética médica de que um remédio nos ajuda, remedia, mas não nos livra de todos os males, corremos o risco de não termos mais remédios e sem eles, químicos ou não, morremos.

2 comentários:

Só no blog disse...

Márlio, parabéns pela estréia, de verdade.Espero que seja o primeiro de muitos textos - é sempre bom encontrar vida inteligente na internet. Foi você mesmo que escreveu?

René Schubert disse...

Ola Marlio,

Muito bom o artigo!
Sucesso e grande abraço!