segunda-feira, 4 de agosto de 2008

POR QUE O ESTADO NÃO CUIDA BEM DAS PESSOAS E O EXEMPLO DE ROSKILDE

O Festival de Roskilde, na Dinamarca, assim como o de Glastonbury, no Reino Unido, é considerado um dos maiores eventos de música da Europa. Este ano, na companhia de outras 70 mil pessoas, tive a oportunidade de acompanhá-lo no início de julho.

Além da satisfação de poder assistir a ótimos shows, de rock às últimas novidades em música eletrônica, com atrações de vários países, incluindo a brasileiríssima Orquestra Imperial, alguns fatos me chamaram a atenção.

Ao contrário do que estou acostumado a ver em eventos semelhantes no Brasil, não encontrei legiões de seguranças de terno, gravata, óculos escuros e comportamento hostil vigiando para que as pessoas não se excedessem em sua diversão. Não houve revistas detalhadas para a detecção de armas ou outros objetos proibidos. O festival tem pouquíssimas regras ou restrições. Na verdade, somente uma recomendação: cuide de si e, se possível, de quem estiver perto de você.

E este era o espírito que a própria organização do festival procurou passar. Em vez de seguranças, havia gentis voluntários da cidade próxima, homens e mulheres, jovens e idosos. Eles cuidavam apenas para que as pessoas tivessem as informações necessárias, como a localização de determinado palco. Alguns observavam a multidão tentando perceber aqueles que, aparentemente, tinham exagerado no consumo de álcool ou outras substâncias para, a princípio, lhes oferecer água. Havia, também, médicos e enfermeiros que percorriam o evento, tentando detectar alguma eventual necessidade de seus serviços. Se encontravam alguém deitado no chão, por exemplo, se abaixavam tranquilamente e perguntavam se estava tudo bem. Sendo a resposta positiva, continuavam sua caminhada. Não se tinha a sensação, em nenhum momento, de se estar sendo vigiado e nem de que, caso algo de errado fosse feito, alguém viria para lhe punir. O outros não o ameaçavam, apenas se divertiam e cuidavam de você.

E com toda esta liberdade, para grande espanto dos defensores da tese de que para se ter segurança são necessários vigilância e controle rigorosos, não vi uma briga sequer, nem soube de roubos ou outros tipos de agressão, nem de mortes por overdose ou por afogamento no grande lago que ficava no meio do festival. Não assisti a qualquer comportamento minimamente hostil, como alguém levantando a voz para outro que eventualmente tivesse furado a fila. Até os banheiros eram inacreditavelmente limpos para um evento com dezenas de milhares de pessoas. Era possível perceber, a todo momento, uma preocupação de não deixar que a minha diversão fosse prejudicial para o outro e, de forma inversa, uma tolerância para que a diversão alheia não representasse um problema para mim. E estes cuidados de forma alguma comprometeram a alegria dos participantes.

Pode-se argumentar facilmente que esta realidade de responsabilidade individual ocorre porque a Dinamarca é um país com uma população altamente civilizada, educada, rica e economicamente igualitária. O preço disto seria uma vida tediosa com altos índices de suicídio.

Quanto à segunda afirmação, sobre como é chato viver em um país de pessoas cordiais entre si, não sei se posso concordar, até pelo vi em Roskilde: os dinamarqueses se mostraram muito mais animados e mesmo mais criativos no figurino do que muitas platéias do nosso país tropical. Quanto aos índices de suicídio, pelo que sei, não existe consenso se eles seriam realmente maiores nos países nórdicos. Pode ser mais um exemplo do antigo mito que associa civilização à tristeza ou alegria ao caos.

Em relação à crença de que os dinamarqueses se comportam de forma responsável, não necessitando serem tão controlados como os habitantes das regiões quentes e pobres do planeta , por terem um maior desenvolvimento econômico e educacional, acho importante fazer alguns comentários.

Se não levarmos em conta os antigos e desacreditados preconceitos sobre raça superior ou clima mais adequado, talvez a crença acima ainda se apóie em argumentos difíceis de se sustentar, a não ser dogmaticamente. O que fica subentendido é que pobres e pessoas de baixo nível escolar precisam de mais vigilância, de mais polícia.

Não convence tampouco a idéia de que os europeus sejam mais civilizados porque têm séculos de desenvolvimento e nós começamos nossa história recentemente. Assim estaremos sempre atrasados pois eles serão sempre mais velhos do que nós. Além disto, nossos antepassados, sejam eles africanos, índios ou europeus, estão no mundo há tanto tempo quanto os de qualquer outro lugar. E países até mais novos que o Brasil, como a Nova Zelândia, confiam mais que nós na liberdade de seus cidadãos. Só podemos sustentar o pensamento de um maior desenvolvimento cultural se acreditarmos que uma cultura é superior à outra.

Aceitar que dinamarqueses, ao contrário dos brasileiros, possam ir a shows sem seguranças autoritários ou mesmo usar o metrô sem ter que passar por catracas de controle da compra de bilhetes, é assumir que nós, brasileiros, somos inferiores e mais selvagens que os descendentes dos vikings.

Funcionamos assim, maltratados pelos governantes e ninguém comenta o porquê disto, como se fosse uma verdade que todos acreditamos mas não podemos dizer publicamente. Nos organizamos e vivemos tendo como base os piores preconceitos. Verdades que não se sustentam diante do menor debate inteligente.

Mas a realidade comprovaria o preconceito velado. O brasileiros adoram burlar as leis. Tire as catracas de controle do metrô para ver quantas pessoas pagariam a viagem. Não coloque seguranças abrutalhados nas festas para ver quantas brigas ocorreriam.

Não temos razão última nenhuma para acreditar na menor civilidade dos brasileiros a não ser a nossa vontade cega de acreditar nisto. E a nossa expectativa gera a realidade. Se achamos que somos selvagens e bárbaros, assim nos comportamos. Com medo dos brasileiros potencialmente criminosos, cercamos nossas casas de cercas elétricas e câmeras . A paranóia demanda um outro que confirme a expectativa de violência. Quanto mais nos fecharmos dentro de muros, seguranças e carros blindados, mais bandidos estaremos esperando.

Da mesma forma dinamarqueses, dos quais se espera civilidade, podem fazer festivais de música sem controle policial e, ao mesmo tempo, sem violência.

Na clínica, esta condição é facilmente percebida. Pais que tratam seus filhos como irresponsáveis, que os cercam de cuidados e vigilância, acabam tendo filhos que se comportam exatamente dentro desta expectativa. Crescem inseguros, precisando sempre de um outro que os controle e diga o que é certo ou errado. Se deixados sozinhos, acabam fazendo bobagens. Os filhos se tornam eternas crianças dependentes.

Não seria esta a expectativa criada pela onda recente de maior controle estatal e tolerância zero? Que as pessoas são irresponsáveis e precisam da tutela do Estado? Somos crianças arteiras em potencial, prontas a fazer besteiras caso o Estado não nos monitore.

Mas por que devemos acreditar que o Estado é uma entidade adulta e esclarecida pronta a nos proteger de nosso descontrole? Os que clamam pelo rigor estatal deveriam lembrar que o Estado é um organismo abstrato que, na prática, é composto por pessoas sujeitas às mesmas imperfeições e vícios que nós. De onde tiramos a idéia que policiais ou políticos possam estar mais preparados que nós para cuidar de nossa liberdade?

Se abrimos mão da responsabilidade pela nossa liberdade individual e a entregamos para o Estado, o que vamos encontrar é uma maior corrupção, truculência e violência por parte deste. É o efeito colateral das leis secas. Mas o maior problema deste tratamento para a liberdade do mundo de hoje é a sua falta de eficácia ao longo do tempo.

O remédio das leis secas tem como princípio ativo a idéia de que para nos controlarmos precisamos de proibições e de um outro que nos vigie. É um remédio antigo contra o qual já se desenvolveram vírus altamente resistentes. É possível, até, que o vírus se alimente e se fortaleça utilizando-se do próprio medicamento.

A história tem mostrado a falência da crença em um outro que nos sirva de modelo do que é certo ou errado, de um outro que nos proteja, nos controle e nos puna caso nos desviemos do melhor caminho. Faliu a idéia de representantes de Deus, de papas, de reis e outras autoridades sábias e infalíveis. De quantos nazismos ou stalinismos precisamos para nos certificar disto? No que deu a promessa de segurança internacional das guerras contra o mal promovidas pelo governo Bush? Precisamos logo nos convencer de que estamos sós para cuidar de nossa liberdade. A responsabilidade pelo que fazemos, daquilo que dá certo ou errado em nossas escolhas, pertence apenas a nós mesmos. A humanidade é uma família sem pai. E, talvez, seja este o seu momento de maturidade.

Voltando ao exemplo dinamarquês, alguém pode argumentar que na Dinamarca, com toda a sua civilidade, também se aplicam leis restritivas à liberdade individual, como penas severas para motoristas alcoolizados.

Concordo. Mesmo países que antes defenderam a liberdade, como os EUA, hoje se fecham no medo, com cada vez mais limitações internas e também ao que vem de fora. Americanos desconfiam dos muçulmanos, os europeus desconfiam dos imigrantes. E ambos temem o descontrole de seus cidadãos, principalmente o dos mais jovens, e pedem um maior rigor do Estado. E corremos o risco de receber, por absoluta idiotice, a mesma cacetada na cabeça que nos foi dado num passado não tão distante.

O Brasil já está calejado na convivência com um outro diferente. Não existe a menor homogeneidade entre os brasileiros. Já experimentamos interpretar isto pelo viés da paranóia, de que devemos sempre desconfiar do outro. Não deu certo. Com todos os muros e truculência policial, vivemos perseguidos pela violência. A questão não é aumentar ainda mais os muros, a vigilância.

Podemos tomar a dianteira e, em vez de um país atrasado, usarmos a nossa experiência para demonstrar ao mundo a possibilidade de confiar na liberdade do outro que nos é diferente. De aceitarmos que o Estado não sabe o que fazer com a liberdade que entregamos a ele. Que é melhor, como na recomendação de Roskilde, que cuidemos nós de nós mesmos.

Sei que está fora de moda, mas tenho uma utopia. Que, de repente, de forma meio desapercebida, no Brasil, as pessoas comecem a abrir mão de cercas e câmeras, de vidros escurecidos nos carros e de seguranças públicos ou particulares. Quem sabe alguns cheguem à ousadia de caminhar sem medo pelas ruas. Se não esperamos bandidos ou adversários, para nossa surpresa, podemos encontrar amigos em nosso desamparo de um outro que nos proteja.

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