quinta-feira, 12 de novembro de 2009

SE QUISER, EMAGREÇA POR EMAGRECER

Conheço várias pessoas angustiadas com o próprio peso que estão sempre seguindo uma nova receita para emagrecer. Mostram-se entusiasmadas no começo, cheias de esperança que desta vez a coisa vai dar certo. Todas têm na ponta da língua as razões para provar que a nova dieta é cientificamente mais avançada que as outras que fracassaram por se basearem em conhecimentos que se descobriram ultrapassados ou errados.

Na fase inicial, os crentes da receita da moda são insensíveis a qualquer argumentação que lhes questione o porquê de acreditar que a dieta atual não terá em breve o mesmo destino que as anteriores. Os resultados positivos logo nos primeiros dias aumentam ainda mais o ânimo e a devoção ao novo esquema de perda de peso: dois quilos em uma semana, em pouco tempo chegarei ao meu peso ideal!

Mas na próxima semana a perda de peso é menor e mais reduzida ainda na semana seguinte. Então vem a frustração, o entusiasmo começa a vacilar, o seguidor da dieta passa pouco a pouco a ser menos rigoroso no acompanhamento das regras receitadas. O relaxamento vai aumentando com o tempo até o completo abandono. Normalmente, diante do desencanto, em um período curto a pessoa recupera o peso perdido ou mesmo ganha uns quilos a mais. Fica resignada com a sua obesidade até que novas crenças anunciadas com estardalhaço na mídia recuperem sua esperança e todo o ciclo recomece.

Outras, mais práticas e eficientes, cansadas da conversa fiada que só serve para vender livros e deixar ricos seus autores, partem para medidas de resultado mais garantido. Por conta própria, por recomendação de amigos ou muitas vezes com a ajuda médica, começam a fazer uso de variadas formulações químicas. À base de inibidores de apetite ou estimulantes do metabolismo, elas permitem que a pessoa faça o que ela não acredita que seja capaz de realizar sozinha: comer menos e gastar mais energia.

Elétricas e sem apetite sequer para uma folha de alface, em poucas semanas os usuários das “fórmulas” perdem o excesso de gordura indesejado ou até mais. Mas, para poder manter o resultado, é necessário seguir com o uso da medicação por um período indeterminado e isto tem seus os custos. A pessoa pode apresentar alterações de comportamento, ficar desanimada ou ansiosa, ter dificuldade de concentração, prejuízos nas relações sociais, familiares, na escola ou no trabalho. Com o tempo pode ser necessário o aumento da dose das substâncias químicas para se ter o mesmo efeito inicial, o que potencializa as chances de ocorrência de problemas colaterais.

Na prática, a pessoa em uso de formulações para emagrecer acaba por ter de deixá-las de lado com o tempo. No famoso efeito sanfona, logo se volta à convivência com os odiadas gordurinhas e com as velhas roupas de numeração maior prudentemente guardadas no armário.

Nos últimos anos, como última e radical solução diante das dificuldades e fracassos para a perda de peso, obesos de variados calibres cada vez mais têm optado por cirurgias que reduzem a capacidade estomacal e/ou intestinal. Normalmente, os que se submetem a tais procedimentos são forçados a diminuir drasticamente a ingestão de alimentos. De uma forma geral, os resultados tendem a ser satisfatórios em relação à perda de gordura. Alguns operados, entretanto, desenvolvem efeitos indesejáveis, como outras compulsões que não por comida, ansiedade, depressão (existem pesquisas que relatam aumento no número de suicídios entre estes pacientes), alterações de personalidade, etc. Uns, para desespero de incrédulos médicos, encontram maneiras de burlar as limitações alimentares impostas pela cirurgia e conseguem voltar a ganhar peso. A capacidade humana de se boicotar surpreende qualquer bom senso racional.

O que vemos em todos os casos descritos acima é a completa incapacidade de, por conta própria, sem estímulos exteriores e apenas pelo esforço pessoal, se conseguir perder peso e se manter magro.

A pessoa que quer perder peso parece trazer a crença de que ela é incapaz de emagrecer sozinha. Acha-se, no fundo, uma gorda irrecuperável, uma irresponsável que não consegue resistir à tentação das comidas calóricas e da preguiça. Fornece quilos de desculpas para tentar justificar a sua incapacidade de comer de outra forma e fazer atividades físicas: não tem dinheiro (dieta e academia custam muito), não tem tempo, tem personalidade fraca, o metabolismo é mais lento, a genética é desfavorável, os problemas da vida não deixam, etc.

Como a responsabilidade pelo peso acima do desejado não é da pessoa, o caminho para emagrecer também não depende da sua vontade pessoal, mas de fatores que lhe são externos: arrumar mais tempo e dinheiro, encontrar uma dieta que não exija muito, fazer terapia, tomar remédios ou, quem sabe, no futuro poder modificar a sua genética. E enquanto não se consegue estas coisas, é melhor se acostumar com a gordura, com as desvantagens de se ter este defeito.

E se emagrecer for uma cobrança imprescindível, faz-se a redução de estômago e fica-se magro à força. O operado, diante da sua nova silhueta, pode se sentir como alguém castrado: conseguiu chegar ao padrão exigido de peso, mas, para isto, lhe foi tirada a satisfação de comer muito. É como se um fumante inveterado fizesse uma cirurgia que lhe impedisse de colocar o cigarro na boca.

O que sonha todo aquele que se vê com o peso acima do desejado é poder ser como aqueles que foram abençoados pela magreza: não ter este fraqueza, esta doença, esta tentação pela comida e pela preguiça.

O gordo imagina a pessoa magra como uma santa, alguém sem as suas carências mundanas. Ele se acha inferiorizado, se sente moralmente ou biologicamente (que não deixa de ser um padrão moral atual) menor que os magros.

A pessoa obesa idealiza que só se sentirá realizada após se livrar dos quilos a mais . Quando for magra, será mais bonita, mais confiante, mais atraente e terá mais sucesso. Por fim, será mais amada e por isto mais feliz.

O gordo também tem a crença de que a comida mais gostosa é a mais calórica. Acredita, do mesmo modo, que uma vida sedentária é muito mais prazerosa do que ficar se movimentando por aí. Ele faz fé no dito popular de que o que é proibido é mais gostoso.

Para sustentar estas crenças, o obeso tem uma relação de culpa com aquilo que acredita ser a sua satisfação. Normalmente come rápido, de forma impulsiva, não saboreia o alimento. Depois sente remorso, arrependimento. A comida só é maravilhosa a distância, no pensamento, na lembrança proibida. No momento em que a tem à sua disposição, passa-se por ela com pressa, com ansiedade, sem poder curti-la. Ficar parado também só é uma felicidade enquanto tem alguém no seu pé lhe cobrando mais ação.

A pessoa gorda idealiza quem é magro e idealiza a comida e a pouca atividade física. Se por acaso encontrar a magreza ou a comida e a inércia, não consegue os usufruir.

Para se manter uma idealização, é necessário mantê-la distante, inalcançável, proibida. Não é permitido ao gordo o prazer pela comida ou ter um corpo magro. Ele está condenado à insatisfação. Vai ser sempre alguém inferior, vai estar sempre fora da festa. Nunca será amado como os outros. Permanecerá infeliz para sustentar um ideal de felicidade. Para acreditar na possibilidade de uma satisfação completa, faz da mudança uma impossibilidade: sou gordo e não tem jeito de mudar.

Talvez, para quem quer fazer da mudança uma possibilidade seja preciso saber que, ao contrário da fé obesa, a impossibilidade está na satisfação plena. Podemos ser magros como Gisele Bündchen , comer toda a comida do mundo ou ficar o dia todo deitados na sombra que não seremos completamente felizes.

Não é necessário esperar pela magreza para poder ser feliz. Não é preciso alcançar uma cintura fina para poder estar satisfeito consigo mesmo, para poder se sentir mais confiante, mais atraente. A pessoa pode gostar de si na condição de incompleta, usar o que tem e não ficar valorizando uma ilusão do que lhe falta. Assim, alguém pode até emagrecer, mas não para ser feliz: emagrece porque já é feliz. Uma felicidade sem um ideal, sem um fim. Uma satisfação de fazer uso do seu desejo incompleto, de estar sempre em movimento. Saber que mais importante do que ficar esperando ser amado é amar.

Sem um ideal para atingir, emagrecer deixa de ser uma obrigação, um dever social para alguém ser bem aceito. Comer alimentos menos calóricos e fazer atividades físicas deixam de ser um sacrifício e podem se tornar uma escolha prazerosa. Um prazer não está no fim, em ser querido, mas em se cuidar, em amar.

Quem está acima do peso costuma associar a sua imagem pessoal à sua condição física: eu sou o gordo. Não espera que ninguém o trate fora deste lugar. Não acredita, por exemplo, que um outro possa ser apaixonar por ele. Se por acaso alguém mostra interesse, ele reage: não está enxergando, eu sou gordo, feio, uma baleia, faça o favor de me ver assim. Talvez, a melhor descoberta para uma pessoa gorda é saber nenhuma característica física (ou mesmo social) que possuímos dá conta de responder sobre quem somos. Que nenhum atributo que temos nos traz a garantia de sermos amados. Que podemos contar apenas com o nosso desejo, com o nosso amor.

domingo, 27 de setembro de 2009

ANTICRISTO E O SALVADOR

O novo filme de Lars Von Trier, Anticristo, tem despertado comentários diversos entre as pessoas que conheço. Alguns não gostaram nem um pouco, acharam o trabalho do diretor pretensioso, cafona, pouco original ou mesmo infantil em sua tentativa de chocar e chamar a atenção. Outros dizem que gostaram, embora não consigam definir bem o porquê: talvez a bela e onírica sequência inicial, quem sabe a atuação dos atores, a fotografia...

Um amigo foi além e me disse que não sabe falar se gostou ou não, mas que, de alguma forma, foi tocado pelo filme, que algum desconforto foi provocado apesar de não poder nomeá-lo ou explicá-lo. Concordo com este amigo, saí do cinema sem poder comentar nada a não ser pela negação: não é um filme de terror, não é uma obra que tenta renovar a linguagem cinematográfica, não se parece muito com os trabalhos anteriores do diretor. Sobre o que era então, sobre meu entendimento a respeito do que tinha assistido, não conseguia dizer palavra.

E a incerteza em relação ao filme não me abandonou com o passar dos dias. Ao contrário, o enigma me perseguiu e foi aumentando diante das opiniões variadas dos amigos. E enigmas demandam algum tipo de resposta, algum tipo de invenção, mesmo que precária.

Então, relembrando Anticristo, pensei em como achei chatos os diálogos nos quais o terapeuta tenta curar a própria mulher traumatizada pela morte acidental do filho pequeno. Em nome do seu amor pela esposa, ele se dispõe a salvá-la da dor por meio de modorrentas técnicas psicológicas após o fracasso do tratamento farmacológico.

O curioso é que embora pareçam estereotipados, os recursos terapêuticos empregados pelo zeloso marido correspondem aos que hoje são prevalentes nos congressos, na literatura científica e nos consultórios dos profissionais da área de saúde mental.

As técnicas de psicoterapia mais recomendadas e utilizadas são aquelas que acreditam que o paciente pode superar seu trauma e se livrar de pensamentos irracionais por meio de uma “desensibilização” pelo confronto direto com aquilo que lhe desperta o medo imaginário.

Deste modo, o marido pede que sua mulher cite as coisas que lhe provocam medo. Depois, que coloque cada coisa em uma ordem de intensidade, para no fim eleger um jardim conhecido da família como aquilo que mais lhe causa pavor. O casal parte, então, para o tal jardim (significativamente chamado de Éden) que se mostra na realidade uma área de montanhas isoladas e cobertas por uma floresta fechada, um lugar de natureza bruta.

Após ter contato com o ambiente que lhe despertava o medo, para a surpresa do próprio marido-terapeuta, a paciente tem uma melhora súbita e completa dos traumas. O sucesso fácil e inesperado do tratamento é o início de um mundo caótico que se revela diante do racional psicólogo. A natureza selvagem se volta contra ele e toma conta do corpo de sua mulher que, para o horror de feministas e politicamente corretos, se mostra totalmente descontrolada, incapaz de respeitar qualquer regra psicológica ou biológica, qualquer bom senso lógico ou civilizado, qualquer limite moral ou sentimento amoroso. Diante da devastação da mulher, de seu indomável impulso destruidor, a única saída é assassiná-la. De salvador, o terapeuta passa a assassino.

Talvez seja este um dos pontos de incômodo que o filme escancara: como a vida daqueles que buscam salvar terceiros pode ser ingrata. Como é triste a sina de pais e mães, maridos e esposas, padres, pastores, médicos, psicólogos e psicoterapeutas de diversas correntes, confrontados com filhos e companheiros que insistem em não seguir os bons conselhos, com fiéis que permanecem com a sua vida pecaminosa e desgarrada de Deus, com pacientes que, por mais bem orientados, continuam a ter comportamentos que sabidamente lhes fazem mal.

Que maldade é esta que escapa a qualquer tentativa de correção por mais bem intencionada que seja, que faz até pessoas bem criadas e que receberam as melhores oportunidades na vida terem atitudes destrutivas? Que mal é este que persiste na humanidade que mesmo após séculos de uso da razão, com todo o desenvolvimento filosófico, científico e tecnológico, ainda é palco dos piores e indignos crimes?

Em Anticristo se diz que a natureza (e talvez a mulher) é a igreja de Satanás. Poderíamos pensar que a Civilização (e os homens), então, é a casa de Deus. Durante séculos os homens tentaram civilizar, dominar, controlar ou domar o mundo natural e feminino em nome de Deus e em nome da razão. Quanto mais tradicional e autoritária é uma sociedade, mais distante esta deve estar da natureza selvagem, mais escondidas e apagadas devem estar as suas representantes do sexo feminino.

Mas por maior que fosse a camuflagem, por maior que fosse a tentativa de controle, a natureza indomável deu um jeito de se fazer presente. No Ocidente, diante do rigor religioso cristão: bruxas, diante da rigidez moral endossada por uma neurologia recém criada: histéricas, diante do dever da felicidade química ao alcance de qualquer um que possa comprá-la: dependentes de drogas, depressivos crônicos e refratários aos tratamentos e os famosos borderlines.

No passado, como solução, queimava-se as bruxas, trancafiava-se e isolava-se as histéricas. E hoje, quando o mal, assim como a demanda por felicidade, se espalhou por toda a humanidade, não respeitando sequer a boa divisão entre homens e mulheres? Para nos livrarmos do mal, se seguirmos a receita antiga, deveríamos matar todos os seres humanos. Um assassinato inútil: como no final de Anticristo, a natureza seguirá o seu rumo indiferente ao nosso desespero.

Em vez de tentar eliminar ou camuflar, talvez possamos encarar e fazer um novo uso do mal que insiste em estar presente na humanidade. O primeiro passo é desistirmos do papel de salvadores.

Quando ficamos diante de alguém que quer nos salvar, nos corrigir, ficamos cobrados a seguir e alcançar um ideal. A pessoa que quer salvar parece portar o conhecimento necessário para livrar a outra de todos os seus sofrimentos, de toda a sua angústia, de todo o seu desajuste. O salvador promete ter o caminho para a felicidade.

Entretanto, um ideal de felicidade só pode se manter se nunca for alcançado. Quando se chega à terra prometida, logo se descobre nela os defeitos, a distância entre a imagem que se tinha e a coisa real. Neste momento, se o que vendeu a receita não souber renovar a promessa, o devoto se sente enganado e da adoração passa ao ódio por aquele lhe fez cair no conto do vigário. Diante de um mestre, o discípulo se sente sempre aquém, rebaixado, roubado de sua possibilidade de ser feliz. O mestre promete, mas não dá. O salvador é percebido, com o passar do tempo, como um tirano, um dominador, alguém que nos escravizou e nos explorou fazendo–nos acreditar em uma ilusão. Deve, portanto, ser destruído.

Além da seu extermínio físico, deve-se acabar com as crenças que ele portava e difundia. Nesta disputa, o mestre é morto ou mata o discípulo rebelde. Se o revoltoso vencer a batalha, passar ele a ser o novo senhor da verdade, até uma nova rebelião.

Quem sabe não seja melhor abandonarmos os lugares de mestre ou discípulos invejosos do mestre, olharmos para a incerteza permanente do mundo e assumirmos apenas o lugar de inventores. Orientarmos-nos não por uma promessa segura e final de completude, mas por uma natureza que jamais poderá ser capturada. Irmos além da separação entre bem e mal, entre civilização e caos e das divisões ilusórias entre homens e mulheres.

A natureza e a mulher não são o lugar do mal, no sentido daquilo que se opõe ao bem. Elas são o indício daquilo que é real: a verdade está na natureza, na mulher. Quando não queremos saber disto, vendamos nossos olhos querendo acreditar que as nossas construções de mundo são o próprio mundo em si, que nossa representação do universo é o próprio universo, que a nossa imagem de uma mulher é a mulher.

A civilização é o lugar da mentira, do engano, da ficção. Se tentamos fazer a ferro e fogo nossas criações serem o mundo, nos dedicamos a um esforço inútil. Se ficamos parados e iludidos com nossas mentiras, a verdade uma hora ou outra cai sobre as nossas cabeças. Aí nos sentimos frustrados, deprimidos, despontados, achando que o universo é uma droga, que os seres humanos são vilões incorrigíveis e que nossa existência é uma porcaria.

Para a sorte dos seres humanos, a natureza feminina não deixou que permanecêssemos acomodados e tranquilos em nossas respostas. Ela se fez presente em homens e mulheres que não recuaram diante da verdade que lhes aparecia. Pessoas que souberam seguir em frente mesmo que para isto tivessem de abrir mão do reconhecimento ou de serem amados. Para alguns, o compromisso com a verdade falou mais alto do que salvar a própria imagem. Estes seres apaixonados tiveram a coragem de não acreditar nas “verdades” de seus tempos e propor novas soluções e novos arranjos.

Talvez a verdade que a natureza incontrolável nos revela seja esta: é impossível dominar o universo, é impossível entender e explicar o mundo, não existe sentido final, resposta última. A mulher não é o complemento do homem, nenhuma pessoa pode completar a outra. Uma verdade que escapa às nossas tentativas de dizê-la e que por isto está constantemente nos animando, nos convidando à vida e à invenção da realidade, dos outros e de nós mesmos. A civilização só se mantém por ser um projeto inacabado, o caos não a destrói, mas a orienta.

Se tirarmos as nossas vendas imaginárias, poderemos saber que já estamos no Jardim do Éden, mas sozinhos. Não há anticristo de quem reclamar, não há salvador por quem esperar. Adão e Eva terão de se virar em um paraíso sem Deus, sem serpente e no qual o fruto proibido é na verdade uma maçã qualquer.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

LEI ANTIFUMO E OSWALDO CRUZ

Pessoas que defendem a lei de restrição ao uso de cigarro em vigor no Estado de São Paulo usam o exemplo de Oswaldo Cruz para argumentar contra os que consideram a nova lei um ato de autoritarismo. Lembram que o admirável médico sanitarista também enfrentou a mesma acusação ao lutar pela obrigatoriedade da vacinação contra a varíola no Rio de Janeiro do início do século passado. Apesar da revolta de parte da população e da imprensa, Oswaldo Cruz conseguiu, com a sua cruzada, eliminar a doença que devastava a cidade.

Pena que este resultado tenha se limitado apenas ao controle da varíola e da febre amarela de então. A população do Rio (e de todo o país), principalmente a parte mais pobre, continuou enfrentando uma gama de moléstias ao viver sob péssimas condições sanitárias e receber humilhantes serviços públicos de saúde e de educação. Décadas depois, talvez para espanto do famoso sanitarista, o mesmo Rio de Janeiro segue infestado de mosquitos que, em vez de febre amarela, transmitem dengue hemorrágica.

A obrigatoriedade de vacinação no passado e a atual lei antifumo são exemplos de como os governos e também boa parcela da população enxergam o povo brasileiro: é dever do Estado Brasileiro civilizar os selvagens habitantes deste país.

Se tem-se a expectativa de que o brasileiro é por natureza irresponsável, cabe a um governo corajoso e que não se deixa contaminar pela baixa índole da população controlar esta tendência incivilizada por meio de leis, fiscalização e punição rigorosas. Somos alvo, então, de iniciativas de governantes que querem passar uma imagem de firmes e atualizados das práticas do primeiro mundo. São lançadas medidas modernizantes isoladas que têm pouco efeito geral sobre a vida das pessoas, mas que servem como um bom marketing para o político em questão.

Assim como um pai que tem a expectativa de que seu filho deve ser bem vigiado para não ser irresponsável acaba por ter um filho realmente irresponsável, um governo que tenha a expectativa de uma população com comportamentos incivilizados termina por formar cidadãos com comportamentos antissociais. Governados, assim como filhos, gostam de seguir a expectativa dos seus mestres, sejam eles pais ou governantes.

E por que o governo do país não muda de expectativa, por que aos poucos não começa a tirar as catracas do metrô, por que não insiste em colocar latas de lixo nas ruas mesmo que inicialmente elas sejam depredadas e por que não oferece serviços públicos de qualidade em vez das precariedades de hoje? Por que não apostar que os cidadãos podem ser responsáveis pela liberdade que têm, por que não passar a confiar na capacidade de convivência das pessoas, de que livres elas podem encontrar um jeito de manter o convívio social?

Queremos ser como a China, um país em que o Estado não dá liberdade para seus cidadãos e que impõe todas as medidas que julga necessárias para a boa convivência? Ter um governo que trata os habitantes como se fossem indivíduos atrasados que precisam ser modernizados (copiando modelos ocidentais) à força? Será que devemos também acreditar que as pessoas do nosso país se tiverem acesso livre à internet e contato com outras ideias que não as do partido oficial podem ser influenciadas e manipuladas por dominadores estrangeiros? Será que o governo chinês acredita que seus cidadãos são todos ingênuos sem capacidade de crítica e de ter decisões próprias? Que pais é este que quer se tornar uma potência mundial, que quer liderar outros países, mas que tem a sua própria população em tão baixa conta?

O Brasil poderia seguir outro rumo. Mostrar que não se muda a vida de um povo reforçando preconceitos em relação a este mesmo povo por meio de práticas de proibição, fiscalização e punição. Há séculos os brasileiros são governados com a expectativa de ser um população incivilizada sem que isto nos trouxesse uma mudança importante em nossa realidade.

Os países nórdicos, como a Dinamarca, foram exemplos de nações que resolveram apostar na responsabilidade de seus cidadãos. Por muito tempo as restrições e vigilâncias foram mínimas. Mas aos poucos, após a chegada de imigrantes, de povos diferentes, têm adotado leis de restrição à liberdade individual. Confiavam em seus habitantes enquanto eles eram homogêneos.

O Brasil poderia tomar a dianteira. Em vez de ficar com a prática provinciana de seguir fórmulas de fora que já sabemos fracassadas, ser o primeiro país a mostrar que se pode confiar em seus cidadãos mesmo eles sendo diferentes, heterogêneos. Seria o melhor e fundamental exemplo de liberdade que este país poderia dar ao mundo em tempos de controle e paranóia.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

DÚVIDA

Já tinha ouvido falar da força do texto da peça Dúvida, de John Patrick Shanley, e do impacto que a sua montagem causou nos EUA. Recentemente tive a oportunidade de assistir, em DVD, à adaptação feita pelo próprio autor para o cinema.

Para quem não teve a chance de ver a peça ou o filme, segue um resumo: na década de 60 do século passado, em uma época de liberalização dos costumes, a Igreja Católica passa por um processo de modernização de suas práticas. Em um tradicional colégio católico americano, um freira defensora dos velhos valores é obrigada a conviver com um novo padre liberal. Pouco a pouco a resoluta freira é tomada pela desconfiança de que as novas ideias do sacerdote, na verdade, servem para esconder e, quem sabe, justificar um comportamento perverso. O padre estaria usando sua posição para seduzir um jovem aluno negro discriminado pelos colegas brancos. Buscando provas, a religiosa começa a investigar a vida do padre e a vigiá-lo com a ajuda de outras freiras. Qualquer indício, como um simples carinho do sacerdote no menino, é considerado uma evidência de pedofilia. Mesmo sem uma prova definitiva, a irmã consegue o afastamento do padre de sua escola. O interessante é que quando o filme termina não sabemos quem estava certo. Não há um julgamento sobre quem estava com a razão, quem na realidade era vilão ou bonzinho. Saímos desamparados de uma lição de moral. Assim como a freira, ficamos perdidos na angústia da dúvida se o padre cometeu ou não o crime.

Se pensarmos que a liberdade de costumes não se deu apenas dentro da Igreja Católica, mas que atingiu todas as esferas sociais, podemos generalizar a incerteza que o filme levanta. Um mundo mais livre seria também um mundo mais perigoso. As pessoas de bem podem, em um meio libertário, estar à mercê de enganadores e aproveitadores que têm como objetivo exclusivo prejudicar os outros.

Assim como a religiosa do filme, a sociedade tenta encontrar mecanismos de vigilância para que possamos pegar os incapazes de conviver em liberdade com a boca na botija. A medicina, apoiada em suposições biológicas, tenta definir quais seriam as pessoas propensas a um comportamento antissocial. Se pudermos prevenir e detectá-las antes que cometam suas vilanias, melhor ainda. Não é de se estranhar que nas listas de livros mais vendidos encontremos guias que serviriam para ajudar as pessoas a reconhecer um psicopata à sua volta.

Uma sociedade livre deve ser também uma sociedade de controle. Câmaras em todos os prédios, casas e ruas. Fiscalização em todas as atividade humanas, qualquer brecha cria a oportunidade para o bandido. Ameaças de multas e cadeia para segurar os impulsos criminosos que, afinal de contas, podem estar em qualquer um que tiver uma liberdade sem vigilância.

Pais devem monitorar seus filhos para que não sejam vítimas de pervertidos que abusam da inocência infantil. Esposas devem acompanhar cada passo de seus maridos para que não sejam trocadas por uma biscate qualquer. Namorados e namoradas devem investigar a vida pregressa de seus companheiros, acompanhar diariamente seus Orkuts e seguidores no Twitter. O inimigo pode morar ao lado.

Pior, o inimigo pode estar dentro de nós. Contra a nossa vontade, podemos ser acometidos por alterações em nossa química cerebral que nos fariam ter atos indesejáveis. Por esta visão, o ser humano é por natureza perigoso. Se não formos bem controlados em nossos impulsos vamos acabar nos matando ou matando os outros. Então, chamamos o Estado para nos vigiar e nos punir, somos todos potencialmente irresponsáveis, potencialmente criminosos. Invertemos o valor de que todos são inocentes até que se prove o contrário: agora, a princípio, todos são culpados. E que venham leis secas, restrições quase totais ao uso de cigarro e outras limitações da liberdade individual baseadas em dados estatísticos e científicos que supostamente seriam a revelação da verdade das coisas (só nos esquecemos de que os cientistas e estatísticos, assim como os representantes do governo encarregados de nos controlar e nos bem proteger, são tão humanos quanto qualquer um e também estão sujeitos aos mesmos vícios e descontroles).

Se as pessoas gastam seus esforços, economias e votos para apoiar a vigilância geral é porque devem encontrar alguma satisfação aí. Os intelectuais, escritores e outros artistas que no passado previram o mundo Big Brother talvez ficassem surpreendidos ao constatar que esta realidade não precisou ser imposta autoritariamente, mas que contou com a escolha e a participação dos vigiados.

É que, se por um lado, a paranóia é sufocante e aprisionadora, por outro ela sustenta a crença de que se somos protegidos de nossos inimigos somos também mais amados. Nosso protetor cuida de nós, ele nos ama. E, se conseguirmos eliminar tudo aquilo que nos atrapalha, seremos plenos e encontraremos a felicidade. A paranóia é uma forma de manter um ideal de felicidade e por isto é tão aceita em nossa sociedade.

Mas a promessa de proteção total é uma falsa promessa de amor e de felicidade, é um engodo. É impossível controlar o universo, é impossível termos segurança e certeza em nossas ações, é impossível alguém que nos proteja totalmente, que nos complete, que feche todos os nossos buracos e brechas, que nos traga a felicidade plena.

E se desejamos saber se alguém está nos enganando basta ver se esta pessoa promete dar o que é impossível.

Enganador e aproveitador é quem promete um mundo seguro e sem vilões. Charlatão é aquele que diz que sabe os meios para se encontrar paz, tranquilidade e segurança plena, a cura de todos os nossos males, de nosso mal-estar permanente. É curioso que livros que ensinam como detectar os psicopatas sejam eles próprios, em suas falsas receitas e expectativas, um exemplo de psicopatia.

A nossa expectativa de completude, de segurança total, de amor perfeito é que cria os vilões à nossa volta. Dizemos que abusaram de nossa boa fé, da liberdade que demos a eles para depois sermos trapaceados. Mas nós criamos os inimigos esperando deles algo que não podem dar: nós quisemos ser enganados, ficar no me engana que eu gosto. Assim, quando a felicidade não vem, podemos culpar os outros ou mesmo as nossas próprias vilanias e fraquezas por não termos encontrados a satisfação esperada. Daqui a pouco estaremos culpando os governos, os cientistas, os gurus espirituais e os escritores de auto-ajuda pelas promessas não cumpridas. Serão os vilões do futuro, como os economistas e financistas são os malfeitores do momento, após venderem a felicidade na riqueza ao alcance de todos.

Elegemos um culpado para não sabermos do impossível da satisfação total. Assim, sustentamos a crença de que basta eliminarmos a causa de nosso infortúnio para sermos felizes. Só que este processo não tem fim, acabamos em uma dúvida permanente.

Diante da dúvida ficamos ansiosos por encontrar uma resposta definitiva e, como ela é impossível, ficamos apenas sofrendo de ansiedade. Uma dúvida nunca pode ser resolvida, uma dúvida gera outra em um processo sem fim. Se dizemos que a psicopatia está no cérebro de um pessoa e que este cérebro é determinado por uma genética, teríamos também de encontrar o que determina a genética de alguém e o que determina o que determina a genética e assim por diante. Por isto este caminho sempre acaba em Deus, a causa última. Uma ciência que visa encontrar as causas das coisas acaba por ser uma boa companheira para as religiões. Não é de se estranhar que muitas seitas modernas se utilizem de conceitos científicos para justificar as suas crenças.

Nunca poderemos determinar a causa final de nenhum comportamento humano. Uma atitude questionadora diante do mundo não vem de quem está na dúvida: quem tem dúvida sempre tem a esperança de uma resposta, acredita em uma imagem definitiva e em algum momento dá um jeito de acreditar que a encontrou. Da dúvida chega ao dogma.

A única maneira de resolvermos a dúvida é eliminarmos aquilo que nos traz a dúvida. Por isto muitas pessoas, para não ter de lidar com a dúvida de ser amado, preferem não viver o amor. Assim como em um relacionamento a busca por querer entender o outro acaba em briga e no fim da relação, nossa busca por querer entender e controlar o mundo pode nos levar ao aniquilamento. Se interpretarmos a liberdade que vivemos hoje como um risco de sermos alvo de vilões, se formos tomados pela angústia desta dúvida, pode ser que acabemos por destruir a nós mesmos. Se a humanidade quiser ficar livre de todos os seus males, é possível que a saída seja a sua própria eliminação. Ao contrário, para estar vivo, para existir, é preciso fazer bom uso do mal-estar. Espero que seja esta a escolha que prevaleça.

Quem opta por ser em vez de não ser deve saber que a condição desta escolha é ter a certeza do impossível da completude: só se pode ser enquanto invenção permanente e sem fim. Deve-se passar da dúvida para a certeza do impossível.

Deste modo, podemos apostar que a liberdade faz um homem criativo e não criminoso e que, em vez da ilusão de um Estado protetor, de um outro enganador que promete a completude e a segurança, se pode acreditar em alguém mais próximo que ensina com o seu amor que, mesmo sendo imperfeita, uma pessoa pode gostar de si. Em vez de vilões que impedem a felicidade plena, alguém que ajuda o outro a ser feliz usando aquilo que tem. Em vez de causas, soluções e em vez de dúvida, invenção.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

ENCONTROS E DESENCONTROS : SER AMANTE NÃO É A MESMA COISA QUE SER AMADO

Toda vez que nos deparamos com alguém que nos atrai, alguém que nos desperta interesse, somos geralmente tomados pela dúvida: será que esta pessoa também gosta de mim?

Diante deste questionamento ficamos inseguros e, nesta condição, é muito difícil que o encontro com a pessoa querida ocorra. É comum no relato de quem conseguiu formar um casal que o encontro entre os dois se deu de maneira inesperada, por acaso, quando não havia expectativas ou cobranças, quando se estava desarmado.

Quando estamos armados da dúvida sobre a correspondência ou não do amor de quem supomos querer, ficamos no lugar de carentes. A pessoa carente tem a crença de que o seu amado tem as características necessárias para lhe trazer a satisfação, a felicidade plena. Enfim, o carente idealiza o outro como aquele que lhe trará a completude. A sua expectativa na relação é ser completado pelo outro.

Para conseguir ser amada, a pessoa carente vende a esperança de que só ela também pode completar o amado, que só ela realmente o ama, que foram feitos um para o outro. Cobra que o outro reconheça isto, como se o amor fosse uma troca na mesma medida. O relacionamento, então, quando ocorre, se dá pelo medo de perder o outro, por uma busca de segurança, como uma obrigação ou um dever.

Uma relação que se sustente no temor e na cobrança pode até trazer uma promessa de conforto e segurança para o casal, mas na prática é vivida de forma bastante conflituosa. Normalmente em um casal assim, um ocupa o lugar de carente e o outro o de amado. As posições podem se inverter com o tempo, mas sem uma coincidência temporal dos lugares. Como em uma disputa de gato e rato, quando se é amado não se ama e quando se ama não se é amado.

Para manter este jogo, é necessário que a pessoa amada permaneça no seu lugar idealizado, sempre superior e distante. O carente só sustenta seu amor enquanto é desprezado pelo outro. Diante de qualquer ideal, como o da pessoa amada que nos completaria, ficamos no lugar de defeituosos, de menos, de insuficientes, de errados, de pecadores. A pessoa carente se coloca em uma lugar de inferioridade e justamente neste lugar que é reconhecida e tratada: como uma porcaria, como alguém sem sensualidade ou capacidade de sedução, alguém que não merece ser amado ou que se está junto apenas por obrigação ou dó.

Se por alguma razão o carente percebe que o amado também o ama, que o outro lhe disse sim finalmente, passa pouco a pouco a pensar que se enganou, que agora não quer mais, que gosta de outra pessoa. E os que sempre ocuparam o lugar de amados, se por algum motivo perdem os seus adoradores, quando por exemplo estes morrem, descobrem que na verdade amavam o outro que desprezavam, mas agora é tarde para voltar atrás. Enfim, o amor sustentado na idealização é um eterno desencontro.

É possível que os relacionamentos baseados no ideal de completude só se sustentem em uma sociedade organizada por obrigações e compromissos sociais, como o casamento e o dever de formar uma família.

Em um mundo como o nosso, em que cada vez mais não há padrões gerais que definam as relações entre as pessoas e em que, a princípio, se poderia escolher qualquer um para amar e estar, a expectativa de ser amado talvez não permita a união entre as pessoas. É curioso observar que em uma sociedade em que os casais podem se unir por amor e nenhuma outra obrigação, o encontro entre duas pessoas pareça cada vez mais ser superficial e fugaz.

Quando estamos livres, quando não temos mais proibições ou deveres para poder amar, nos deparamos com a frustração de que o outro não pode nos completar. Diante desta constatação, podemos ficar desanimados, queixosos ou nos resignarmos de que o amor não existe, que é uma ilusão boba, que só queremos sexo ou uma companhia para ir ao cinema, nada muito duradouro.

Talvez devêssemos mudar de expectativa amorosa para possibilitarmos novos encontros. Temos práticas novas mas ainda estamos permeados por crenças antigas.

Se conseguíssemos abandonar a fé na completude e se, em vez de uma obrigação ou uma prisão, pudéssemos perceber uma relação a dois como uma escolha, é provável que encontrássemos a oportunidade de um novo amor.

Quando idealizamos alguém e queremos que este nos complete, chamamos de amor a expectativa de ser amado. Neste caso, amar e esperar ser amado se confundem. De forma diferente, quando alguém por acaso nos despertar paixão, podemos considerar que esta pessoa na verdade está nos convidando a nos percebermos como desejantes e não como carentes. Desejar é amar na posição de quem se sabe imperfeito sem possibilidade de cura, de alguém que ama mas não pode ser amado ou completado e que por isto tem de estar sempre amando, animado, inventando e criando repostas na vida.

Podemos, assim, tentar apostar que quando alguém nos fala “eu te amo” está dizendo “você provoca amor em mim”, “você desperta o meu amor” “você me faz amante” e não “você é amado por mim” ou “eu te completo e você me completa”. O amor do outro não faz ninguém completo, mas desejante.

Ser amado é um ideal ou um fim e, por isto, nunca deve ser alcançado. Deve ficar só na promessa. Apenas amar, sem a cobrança de ser amado, permite uma oportunidade real de encontro. Amar sem idealizar é perceber encanto no enigma que é o outro para mim. É ver beleza na incompletude, no que a outra pessoa nos traz de real, quando estamos próximos, no presente e não apenas enquanto ideal, no como deveria ser, quando estamos distantes, na impossibilidade, no não tem jeito, no desencontro. No amor idealizado quando um ama o outro não pode amar, um é amado e o outro quer ser amado. No amor desejante os dois provocam amor um no outro, os dois são amantes ao mesmo tempo.

Para que haja o encontro entre dois amantes é necessário que pelo menos um dos dois consiga sair da dúvida, da insegurança de ser amado e acreditar e insistir em amar apenas. Que um não exija provas de amor do outro e nem se sinta na obrigação de oferecê-las. Que ensine, com o seu exemplo, que é possível amar sem a expectativa de ser amado. Deste modo, não deve cobrar que o outro faça o mesmo que ele e que queira ser amante também, não dever fazer ameaças e nem colocar temores, mas permitir a escolha. Se por acaso a outra pessoa topar poderá haver o encontro.

Quem vive de idealizar o amor exige do outro uma coisa que ele não pode dar. Como é impossível completar alguém (talvez só na morte se encontre o sossego, a segurança e a paz da completude) o final de toda idealização são acusações contra o amado que lhe prometeu uma coisa e entregou outra. Dormimos com o príncipe ou a princesa e acordamos com o vilão ou a bruxa.

Os aspirantes a amados estão sempre inseguros, sempre na expectativa de perder o lugar imaginário que buscam, sempre ansiosos, na paranóia, no medo de ser menos queridos e por fim rejeitados.

Diante da angústia de se perceber incompleto, do nosso mal-estar incurável, podemos apelar para a ilusão do outro, para a crença de que se pode encontrar alguém que nos complete, que nos ame totalmente. Outra alternativa seria lançar mão da criatividade, ter o amor não como um fim, mas como ferramenta para viver. Quem escolhe desconhecer a incompletude vive na esperança de um outro que nunca vem, se entretendo em expectativas frustradas e paralisado em sua capacidade criativa. Quem sabe do impossível e inclui a impossibilidade de perfeição em sua vida, se vê como criador, como agente. Um fica no lugar de mal-amado, o outro no de amante.

Afinal, o impossível de ser compreendido é que permite comunicar, o impossível de ser escutado é que permite falar e o impossível de ser amado é que permite amar.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

SE, JIE ZII E ZIE

Desejo e Perigo (Se, Jie no título original em Chinês), filme do diretor Ang Lee atualmente em cartaz nos cinemas, parece tratar de temas já vistos nas telas em outras produções: mocinha envolvida na luta pela libertação de seu país torna-se espiã, se faz passar por amante do vilão e, no fim, contra a sua vontade, acaba se apaixonando por ele.

Mas a percepção de falta de novidade só funciona nos resumos de divulgação do filme que tentam atrair o maior público possível descrevendo o trabalho de Ang Lee como um thriller bem feito destinado ao entretenimento de uma audiência que busca somente um pouco de adrenalina.

Quem assistir ao filme com um mínimo de atenção pode sair do cinema com algo bem mais valioso do que uma pretensa descarga hormonal. Pode-se descobrir que Desejo e Perigo é uma obra delicada e, ao mesmo tempo, provocante e surpreendentemente inovadora.

A novidade do filme está no questionamento que ele provoca de valores sociais a que estamos acostumados. Não necessariamente dos valores caretas que de uma forma geral já sabemos ultrapassados, como virgindade antes do casamento ou sexo apenas com fins reprodutivos. O que Desejo e Perigo interroga é muito mais atual e perturbador: será que o mais importante em nossas vidas é lutar por alguma ideia que temos de um mundo melhor, mais harmônico e justo?

Algumas décadas atrás as pessoas saíam às ruas ou mesmo pegavam em armas para defender um planeta com menos desigualdade: combatiam os dominadores e exploradores dos mais pobres e excluídos. Buscavam eliminar as injustiças perpetuadas pelos donos do poder que viviam de privilégios e prazeres no meio de uma massa excluída e sofredora.

Mas após o fracasso dos sistemas comunistas, da pobreza e da feiúra socializadas de Cuba e companhia, mesmo que ainda permaneçam alguns Chávez perdidos no passado, foi-se embora a última chance de encanto pelas utopias. Como resultado desta desilusão, passou-se a defender que a organização social capitalista era o fim do desenvolvimento humano, que não haveria mais mudança social significativa, que teríamos chegado ao fim da história. De sonhadores de um mundo diferente, deveríamos nos resignar com uma realidade prática, definida e, porque não, cínica.

Desejo e Perigo pode oferecer uma alternativa às utopias socialistas ou ao cinismo capitalista, às imagens idealizadas de um ser humano sonhador ou resignado. No filme, jovens atores se unem para a ajudar a China a se livrar da cruel dominação japonesa. Idealistas e corajosos, se arriscam em nome do seu ideal de libertação. Entretanto, não conseguem ver realizado o seu sonho. São traídos pela companheira que, atordoada pelo seu amor ao inimigo, permite que ele escape e condene ela e os seus colegas de teatro à morte.

Mas a atitude da jovem atriz de forma alguma parece um ato de fraqueza, de covardia. Ao contrário, sua escolha mostra-se corajosa e honrada. Seu compromisso maior não é com o ideal de seus camaradas. Mais importante e sincera é a sua lealdade ao amor que sente, mesmo que isto lhe custe a própria vida.

O que parece uma escolha ética egoísta pode na verdade se revelar uma nova orientação para os tempos em que vivemos, uma possibilidade de mudança para um mundo sem utopias, sem ideais de equilíbrio, harmonia e perfeição. Uma forma de sairmos do cinismo capitalista, das relações precisas e matemáticas, para encontramos o encanto, o mistério e o entusiasmo pela experiência humana.

O amor que aparece no filme não é o amor romântico idealizado de completude. Mas um amor que tira as máscaras sociais, as divisões ilusórias que nos fazem acreditar na separação entre vilões e mocinhos, entre bons e ruins. Para isto, este amor deve fazer os amantes se sentirem incompletos, imperfeitos, cheios de furos e buracos.

Deve-se fazer o outro se perceber não pleno e desejante. E é isto que o relacionamento entre a atriz e o aparente insensível burocrata do filme mostra. É como se os dois aos poucos fossem se furando e, assim, provocando o desejo um no outro. No fim não se trata mais de uma jovem frágil e idealista e de um velho autoritário e corrupto, mas de dois seres humanos que se amam pelo desamparo de suas existências. O filme exibe este processo de transformação por meio de belas e intensas cenas de sexo.

Mais do que eliminarmos os exploradores do mundo, o desafio atual é ir além da divisão entre bons e ruins, entre vilões e inocentes, entre agressores e vítimas. Sem a quem culpar pela nossa infelicidade temos de nos deparar com a nossa impossibilidade de encontrar um universo justo e equilibrado.

Deste modo, poderemos encontrar uma nova orientação ética que não seja por um ideal final, por uma promessa de perfeição que nunca vem. Em vez de expectativas ilusórias, nos nortearmos por aquilo que o universo nos traz de real. Um mundo não do que deveria ser, mas um mundo do que é, do que se apresenta para nós. Uma realidade que está sempre exigindo respostas renovadas, uma obra em movimento mas sem um fim. Em vez de frustração, queixa, desânimo e arrependimento, podemos gastar nossos esforços em criar soluções. Só contar com aquilo que temos e não com aquilo que deveríamos ter. Em vez de uma felicidade que depende de encontrar o que nos falta, uma possibilidade de ser feliz usando o que se tem para inventar repostas, mesmo que precárias.

Se em uma ética do ideal nossa orientação vem da esperança do encontro com a perfeição, de um por vir, de uma união com Deus na eternidade, a ética real se guia pelo que é presente, por aquilo que nos aparece, pela surpresa que o universo nos oferece, por aquilo que nos anima em nossa incompletude. Se não há Deus, a ética real pode se valer apenas de um simples olhar de quem está ao nosso lado, de alguém que nos provoca e em quem provocamos amor.

Zii e Zie, trabalho mais recente de Caetano Veloso, apresenta uma musicalidade estranha, dura e pouco melódica que acompanha possivelmente algumas das letras mais frescas e iluminadas da música popular contemporânea. Reproduzo abaixo a letra da última canção do álbum:

Diferentemente

Acho que ouvi numa canção de Madonna
“When you look at me I don’t know who I am”
E desentendi
Pois comigo é você quem, me olhando, detona
A explosão de eu saber quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo
Alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
E aí o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E no entanto
Diferentemente de Osama e Condoleezza
Eu não acredito em deus

Em um mundo em que não podemos mais nos guiar por uma imagem divina, por um mestre, por um ideal ou uma utopia, talvez não reste outra certeza que não seja o olhar de alguém que sabe da sua imperfeição incurável, mas que mesmo assim (ou por isto) insiste em buscar um outro para amar. No momento em que somos alvo deste olhar, encontramos a nossa única possibilidade de existência: uma invenção permanente que tenta responder a um desejo de amor para sempre impossível.

sábado, 30 de maio de 2009

FLOR DE MARACUJÁ

Um amigo que possui em seu apartamento um amplo jardim repleto de árvores frutíferas (ele mora no primeiro andar, junto ao solo, e por isto tem um grande espaço livre além da área construída do imóvel) me descreveu entusiasmado as belas flores do seu pé de maracujá que em determinadas épocas do ano enfeitam o ambiente.

O que achei curioso foi o fato de que a beleza da descrição se devia não só às características específicas das flores, como sua coloração ou formato das pétalas, mas principalmente a algo surpreendente que aparecia no relato de todo o ciclo de vida delas, desde a floração até os seus frutos: de uma planta rasteira e monocromática nascem flores de cores variadas que necessitam ser apreciadas de baixo já que estão sempre voltadas para o chão. Do meio destas delicadas formações, surgem pequenas esferas esverdeadas que vão crescendo até atingirem o tamanho volumoso e a cor amarela próprias do fruto que usamos para fazer sucos e caipirinhas.

Uma história simples, talvez corriqueira para aqueles que se dedicam à jardinagem, mas que me pareceu bonita e estranha ao mesmo tempo. É como se o enredo dos pés de maracujá não seguisse uma ordem ou uma lógica a que estou acostumado. Acredito que o encanto que senti ao ouvir meu amigo veio desta pequena surpresa. Saí de sua casa com um pensamento:como observar a natureza pode ser fascinante.

Confesso que depois fiquei um pouco contrariado por esta conclusão, afinal nunca consegui me seduzir pelos discursos a favor de uma vida harmônica com a natureza. Há muito tempo tenho uma certa aversão a ideais naturebas. De uma forma geral, ao ouvi-los, saio com o sentimento de estar escutando a defesa de uma pureza que em nada se diferencia da pregada pelas religiões tradicionais. Para os naturalistas, a civilização é encarada como um pecado. O homem verdadeiro e limpo seria aquele que vive em sintonia com o espaço natural. Como toda religião, este naturalismo vive de vender ideais ilusórios, promessas nunca alcançadas de equilíbrio, perfeição e felicidade.

Acredito que o ser humano está impregnado de modo irremediável pela civilização, pelas suas criações e transformações em seu ambiente natural. A civilização não é um defeito, um embuste que nos impede de termos contato com o mundo verdadeiro, ela é o próprio mundo humano, a nossa única realidade. Não temos a menor idéia de como é o mundo real, a natureza em si, embora ele esteja sempre presente nos rodeando. Diante desta presença constante, estamos permanentemente inventando arranjos que tentam dar conta deste universo que nos escapa.

A linguagem é a nossa grande invenção em reação a um meio misterioso. Mas cremos tanto que ela é uma representação fiel do mundo real que a tomamos como este próprio mundo em si. Não queremos saber da distância instransponível entre o universo que criamos e o universo real. E a todo momento este engano nos cobra, quando somos surpreendidos por algo que não esperamos, um desastre, um acidente, alguma coisa que não funcionou como deveria. Mas reagimos reforçando o engodo, dizendo que a nossa capacidade de representação está em contínuo processo de aprimoramento e que, em um futuro talvez nem tão distante, encontraremos uma completa justaposição com o que é real. Neste momento teremos a certeza e a segurança total da atividade humana, não seremos mais alvo de eventos inesperados, estaremos livres de acidentes, doenças, surpresas e, quem sabe, eliminaremos a morte.

Para as religiões, o mundo verdadeiro é aquele que está fora de nós, no céu ou em um nirvana qualquer. O mundo em que vivemos é apenas uma ilusão passageira. De uma forma diversa, a razão e as ciências trouxeram a esperança de encontrar o mundo real por aqui mesmo. Defenderam a crença de que a observação e a descrição rigorosa das coisas nos permitiriam atingir uma representação completa e perfeita do universo.

Mas a nossa capacidade representativa é constituída por vícios incorrigíveis. Quando nomeamos algo que percebemos, estamos fazendo uma generalização sem qualquer ressonância no mundo real. Ao dizermos, por exemplo, pedra, fazemos um recorte que tem, como princípio, a crença de que o universo é composto de coisas semelhantes que se repetem. Para que sejam comparáveis, também devemos acreditar que estas existências têm limites precisos. Ao realizar este recorte e este limite, dando um nome a uma percepção, o ser humano está fazendo existir algo que necessariamente não existe no mundo real, está criando, de fato, uma ficção. É provável que, no universo real, as coisas não possam ser generalizadas nem isoladas umas das outras, de modo que é impossível nomeá-las. Enfim, as coisas só existem enquanto invenção, obras humanas ficcionais.

Nos iludimos acreditando que o universo segue uma lógica matemática. Nele, as coisas não são unidades inteiras que podem ser somadas com um resultado preciso. No mundo real é impossível somar 1+1 porque não há nenhum número1, não existe uma unidade delimitada no tempo e no espaço. A matemática só funciona perfeitamente em nosso mundo inventado.

Diante da nossa percepção de que as unidades que nomeamos aparecem e desaparecem do mundo, inventamos um ser chamado tempo. Assim, podemos dar prova da existência das nossas criações, dizer que elas duraram um tanto definível, que nasceram e morreram em tal data, que uma coisa vem de outra, que tudo tem causa e conseqüência, que a passagem das coisas pelo mundo deixa rastros e frutos.

Construímos um mundo humano à imagem e semelhança da nossa invenção, existências que se repetem, coisas que se pretendem unidades, tudo bem delimitado. Os objetos humanos tentam acompanhar a nossa fantasia. Uma cadeira humana parece muito mais precisa que uma pedra ou uma flor percebidas na natureza. Vivemos dentro desta bolha virtual querendo nos convencer o tempo todo de que ela é real.

É assim que tento entender a necessidade de olharmos para a natureza, para a flor de maracujá, não para dominá-la, defini-la ou representá-la perfeitamente, mas para encontrarmos o enigma intransponível que o universo nos oferece. Enigma que nos mantém vivos e animados ao demandar invenção permanente.

Não precisamos temer o assombro que é o universo, devemos encará-lo sob o risco de perdermos a beleza, o encanto, a surpresa e, com tudo isto, a própria humanidade.

Se algum dia encontrássemos a fantasia impossível da completude, se nosso mundo de invenção fosse equivalente ao mundo real, não haveria lugar para o ser humano, perderíamos a nossa diferença, voltaríamos à massa amorfa e sem existência do universo. Desistiríamos de nossa condição de criadores, de ficcionistas que fazem existir marias, prédios, árvores, mitocôndrias e galáxias.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

AMOR VERDADEIRO

Qual a necessidade real de se ter um amor? Talvez esta seja uma das perguntas que mais tenho escutado nos últimos tempos.

A resposta mais imediata poderia ser algo como: ter alguém para nos fazer companhia, alguém para dividir projetos, alegrias e angústias, alguém para dar e receber carinhos, cuidados e proteção.

Por esta visão, os amantes seriam bons companheiros e o sucesso da união dependeria das características e gostos em comum e não das eventuais diferenças entre os parceiros.

Este tipo de relação se distinguiria do que se chama paixão. A paixão pode até ocorrer no início do relacionamento, mas ela deve ser atenuada e, se possível, abolida. Amar exigiria uma convivência calma e tranqüila entre os amantes que deveriam navegar em mares serenos e seguros para o bom desenrolar de uma vida a dois.

A paixão seria um sentimento perigoso e enganador, uma patologia que afeta corações inocentes e traz conseqüências desastrosas: o destino de todo apaixonado é a frustração, o arrependimento e a infelicidade.

Nos relacionamentos deveríamos ser práticos, reconhecer que mais importante são os nossos deveres, nosso juramento de lealdade para com aqueles que escolhemos como nossos cônjuges.

A relação entre os parceiros, pela perspectiva descrita acima, em nada se diferencia do relacionamento entre pais e filhos. É como se apenas houvesse uma troca quando a pessoa se torna adulta. Em vez de pai e mãe, marido ou esposa.

Bom, o único elemento que faz a distinção entre a afetividade de pais e filhos e marido e mulher é que, na segunda, deveria haver relações sexuais entre os parceiros. Mas é neste diferencial que aparece uma complicação para os que defendem o amor companheiro: a atração sexual, o tesão, demanda uma certa dose de paixão entre os amantes. Se este fogo não está presente, os casais até podem transar, mas de forma rotineira, sem muito entusiasmo, como uma obrigação. E, mesmo para que isto aconteça da melhor forma possível, precisam dirigir seus pensamentos para outros para os quais secretamente devotam uma paixão infiel. Cada um dos companheiros esconde um amor distante, impedido ou proibido que considera mais autêntico, mais sincero:alguém pelo qual se supõe, mesmo que como uma lembrança do passado, estar apaixonado.

É como se o amor verdadeiro fosse não o cônjuge amigo e devotado, mas aquele que nos provoca paixão. Desta maneira, a reposta mais adequada para a pergunta inicial, sobre a necessidade de um amor, deve ser: ter alguém não para nos fazer companhia, mas ter alguém para se apaixonar.

E qual a necessidade de se estar apaixonado? Para se tentar responder a esta questão talvez devêssemos entender um pouco o que é este sentimento, o que ele desperta, como pode ser reconhecido.

Para isto podemos lançar mão tanto da recordação de cada um no momento em que se percebeu neste estado quanto dos inúmeros exemplos que a literatura ou a música popular nos fornecem. Por exemplo, no final da canção Amor I Love You de Carlinhos Brown e Marisa Monte, em que Arnaldo Antunes lê um belíssimo trecho do livro Primo Basílio de Eça de Queiroz: (...)tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente!Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, com um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Em Canção da Manhã Feliz, Haroldo Barbosa e Luiz Reis cantam uma luminosa manhã em que o azul e a luz são demais para o coração. Mas talvez o exemplo mais caro aos brasileiros seja o da garota do corpo dourado que ao desfilar por Ipanema faz o mundo inteirinho se encher de graça, na mais conhecida canção da nossa música popular.

O sentimento que a paixão provoca é justamente este: de repente o mundo se transforma, fica mais radioso, mais colorido, mais feliz. Como se todas as dificuldades, limites e queixas perdessem sua importância, como se fôssemos transportados para uma outra realidade, como se não pudéssemos mais ser os mesmos. E talvez seja este o valor de se encontrar uma pessoa para se apaixonar: a possibilidade de nos modificarmos, de sermos renovados e, como no texto de Eça de Queiroz, termos um acréscimo de vitalidade.

Mas este arrebatamento é muitas vezes descrito e percebido como um exagero desproporcional e irreal, um fogo de palha destinado a uma combustão rápida. Isto nos permite uma terceira questão: seria possível manter, sustentar, fazer durar uma paixão em um relacionamento?

A paixão, ao nos modificar, expõe que somos incompletos, que nossa visão de mundo e nossas fórmulas e receitas de como viver de forma tranqüila e segura são furadas. Estar apaixonado é estar em um mundo de incertezas e, por isto, muitos se assustam diante do amor. Recorrem, então, a estratégias para se ver livres deste incômodo.

É possível que o grande veneno usado para se aniquilar uma paixão seja a sua idealização.

No começo a pessoa amada é vista como perfeita para nós , alguém que tem todas as características que buscamos para nos completar, para nos satisfazer. Fantasiamos uma vida a dois cheia de compreensão e devoção mútua. O outro é o nosso príncipe ou princesa, nossa cara metade ou alma gêmea, predestinado a nos trazer a felicidade.

Depois, com o tempo e com a convivência, após o sim no altar ou uma jura de amor qualquer, quando não mais existir impedimentos que afastem os amantes, o outro pouco a pouco passa a ser alvo de queixas e acusações. Brotam os defeitos e com eles o antes perfeito amado começa a ser percebido como um enganador e a sua face verdadeira seria então revelada: na realidade o príncipe é um vilão, ou melhor, um sapo.

Diante da expectativa impossível de perfeição, não há outro caminho que não seja a passagem de anjo a demônio, de maravilha a porcaria. O engano é achar que a imagem negativa é mais real. Tanto ela quanto a positiva são rótulos imaginários que criamos para sustentar a crença nunca alcançada de encontramos um amor que nos complete. Mas, por esta estratégia, o príncipe fica só na promessa e o sapo é a realidade concreta que temos ao nosso lado. O amor, assim, é uma ilusão que não se pode realizar.

O amor companheiro é normalmente um amor idealizado e por isto cobra, é carente, possessivo e competitivo. Quer aprisionar o amado em uma imagem idealizada, normalmente na de errado, insuficiente, vilão, agressor, enganador, mentiroso. Espera que o outro se reconheça como um pecador irresponsável que precisa sempre de uma mãe ou de um pai para poder bem viver, para lhe corrigir, proteger e ensinar o bom caminho. É uma relação que busca a dependência.

Para se manter a paixão é necessário se manter o encanto. A paixão não nasce, ela não é fruto da idealização de alguém, mas a sua morte começa aí. O que desperta a paixão é o encontro com uma pessoa que nos traga um enigma, alguém possuidor de uma sedução que nos escapa, de um mistério. Ao idealizarmos, mesmo que positivamente, estamos tentando apreender este mistério, dominá-lo e encaixá-lo dentro de uma imagem precisa. Mas, ao fazermos isto, estamos anulando a paixão. É como se os amantes estivessem o tempo todo fazendo um enorme esforço para se livrar do encanto, para mantê-lo distante ou proibido.

A idealização em si não é o problema, mas sim a expectativa de que ela possa ser uma verdade concreta, que possamos encontrar na realidade a imagem idealizada. Deveríamos saber que o que idealizamos é uma ficção, que o mundo e a pessoa real nos escapam e que seus mistérios demandam uma contínua invenção. E é este desconhecido que nos provoca entusiasmo por alguém, que nos desperta a paixão, que nos transforma, que nos coloca em movimento, que nos convida ao amor. E um bom começo para se perceber o outro como uma imagem sem possibilidade de finalização é perceber a si próprio como definitivamente incompleto. Desta forma, podemos estar perto, podemos conviver com nossos amados, ouvir juras e ainda assim manter o desejo e realizar o amor.

O experiência humana nos mostrou que Dom Quixote está certo: o mundo da ficção é a nossa verdade. Os que pretendem nos convencer de que as nossas criações são a realidade do mundo revelada é que estão enganados. Mas, assim como o Cavaleiro da Triste Figura, precisamos inventar um amor, uma Dulcinéia del Toboso qualquer para justificar e dar razão às nossas batalhas, às nossas aventuras, à nossa vida.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

UM BECKETT PARA O SÉCULO XXI

Li impulsivamente, emendando um no outro, os três últimos livros do escritor inglês Ian McEwan publicados no Brasil: Reparação, Sábado e Na Praia.

A escrita de McEwan segue um formato bem tradicional se considerarmos os padrões introduzidos na literatura pelas vanguardas do século passado. Seu texto tem, de uma forma geral, uma narrativa linear, os enredos são simples e seguem uma lógica facilmente acompanhável, os personagens são bem caracterizados, o vocabulário é o usado pelas pessoas comuns e o escritor não costuma lançar mão de recursos estilísticos modernosos como neologismos ou inversões e corrupções das normas gramaticais.

Entretanto, no final da cada livro do escritor, tive a sensação de ter passado por uma experiência extremamente contemporânea. A evidência mais perceptível deste sentimento foi a surpresa pelas novas questões que as obras me provocaram.

Em Reparação, a arte, a ficção ou a invenção como única forma de se reparar uma impossibilidade humana original. Em Sábado, a revelação de que os lugares, divisões e hierarquias sociais são ilusões e que, embaixo destas fantasias, existe um vazio que nos convida à solidariedade. Por fim, em Na Praia, um cruel descaramento do esforço que fazemos para afastar a felicidade de nós, para depois, em um momento que nos pareça distante o suficiente para não poder mais resgatá-la, dizer: podia ter sido feliz e não fui. A eterna queixa de homens e mulheres.

Ser moderno no último século significava romper com as tradições e padrões estabelecidos. Mas de uma maneira tão radical que não visava apenas, como nos séculos anteriores, trocar uma escola por outra, um modelo estabelecido por outro. Tratou-se de quebrar qualquer possibilidade normativa, de se criar um padrão que fosse hegemônico sobre os demais. O que se questionou foi a própria validade das regras, dos formatos.Vale qualquer forma e nenhuma é, a princípio, melhor que outra.

O fim de leis gerais de como bem escrever, de um modelo que fosse certo ou errado, melhor ou pior, teve, como efeito esperado, mostrar que a linguagem é um eterno mal-entendido, que o mundo não tem um sentido definido e preciso, que jamais podemos ser totalmente compreendidos por quem nos ouve. Os escritores do século 20 aniquilaram o que restava da imagem narcisista humana.

Samuel Beckett talvez tenha sido o mais expressivo autor desta época. Beckett, com sua revolucionária obra, fez o absurdo da experiência humana entrar definitivamente para a cultura.

Mas o que fazer agora que sabemos que Godot não vem mesmo? Não vem porque não existe. Então, neste desamparo, qual caminho seguir em um universo sem um sentido final, em que a perfeição é apenas uma ilusão impossível, em que não se pode esperar alguém que nos ame incondicionalmente, alguém que nos reconheça por inteiro, em que não há limites rígidos, em que as verdades são passageiras e em que não existem modelos e receitas seguras?

Vamos ficar somente queixando da perfeição perdida? Concluiremos que o mundo, por não ser perfeito, é uma porcaria e que o ser humano é uma droga? Permaneceremos denunciando que os afetos são mentirosos e que devemos ter uma relação cínica e prática com a vida? Seguiremos lamentando o fato da humanidade ter sido enganada por séculos? Iremos pedir a cabeça dos que nos venderam o engodo, sejam eles religiosos, governantes, milionários ou celebridades?

Embora escondida sob inúmeras fantasias, no fundo, já sabíamos desta impossibilidade. Mas agora esta realidade não pode mais ser camuflada. O exercício humano da razão, os séculos de questionamentos, inexoravelmente nos conduziu para que as ilusões fossem caindo uma a uma. Não sobrou nem a garantia em Deus e nem na própria razão entendida como um conhecimento que nos traria a certeza e o controle do mundo.

No século 21, precisamos dar uma passo além da denúncia do vazio humano. Não necessitamos de criadores que façam o mesmo que Beckett e seus contemporâneos, mas que sigam a partir de onde eles chegaram.

Não vejo como inovadora, por exemplo, a criação de alguns escritores brasileiros que, em uma tentativa de se contrapor à tradicional literatura regionalista do país, adotam Franz Kafka como um modelo de vanguardismo e passam a escrever histórias bizarras, soturnas, com enredos chocantes, não lineares e sem um entendimento definido. Para o mundo em que vivemos, Kafka está no mesmo lugar que Cervantes, Flaubert ou Balzac:grandes autores do passado. Precisamos de escritores que nos possibilitem novos olhares, até para que possamos manter sempre vivos, através de novas interpretações, os autores dos períodos anteriores.

Acho datado tentar mostrar, em pleno 2009, que a linguagem não comunica. Recentemente li uma entrevista com um diretor e autor teatral considerado inovador na qual ele diz que procura expor, em suas obras, os limites e a precariedade da linguagem. Já sabemos disto há mais de 100 anos. Trata-se de uma novidade velha.

Talvez um escritor moderno no século 21 seja alguém que não negue a experiência do absurdo revelada pelas vanguardas passadas. Mas em vez de ficar paralisado ou se lamentando, ele se pergunta e daí, o que podemos fazer a partir da falta de sentido, da ausência de comunicação, de uma linguagem que é pura fantasia.

Ian McEwan é um autor que consigo acreditar neste lugar. Não se preocupa com formatos revolucionários, mas usa a escrita regular como um ato de desespero. Não quer encontrar um sentido final para o mundo, mas lança mão de sentidos possíveis que, assim como um encanto ou magia, tentam, nem que seja por uma ilusão de tempo, enganar uma impossibilidade original. Suas delicadas, longas e detalhadas descrições das pessoas, dos objetos, das paisagens e dos acontecimentos demonstram amor à experiência humana mesmo sendo ela imperfeita. Amor às ferramentas que os seres humanos recorrem para enfrentar a sua tragédia: a linguagem, as palavras, a ficção. Uma ficção que sabe da sua precariedade, do seu impossível, mas que não recua e não desiste de exercer a sua humanidade.

Se a comunicação é sempre falha, se o mal-entendido está constantemente presente, se não há uma autoridade infalível que nos garanta um sentido preciso para as palavras, não quer dizer que é melhor nós pararmos de falar uns com os outros.

McEwan faz uma obra que pode ser compartilhada com quem o lê. É uma escrita solidária e portanto afetiva, amorosa. Talvez porque ele não se preocupe em passar uma mensagem, em explicar algo, em expor ideias e conceitos. Suas descrições se parecem mais com testemunhos: um testemunho sincero daquilo que escapa de poder ser bem dito, bem representado O mais importante em seu trabalho está além da sua aparência. Através de uma linguagem comum, o escritor não vende um modelo, mas oferece um exemplo da experiência de se tentar enfrentar os limites da condição humana. Um exemplo que inclui o leitor que, assim, é convidado, ao seu jeito, à invenção.

Ao contrário de McEwan, aqueles que optam por fazer textos de formatos herméticos tentando mostrar as insuficiências da comunicação acabam provocando o mesmo efeito que se quer combater: a crença na possibilidade de uma representação perfeita. Os trabalhos nebulosos, que não podem ser compartilhados minimamente, são como delírios individuais que não têm nenhum objetivo atual que não seja o exibicionismo: olhem como minhas loucuras e minhas viagens são bacanas. São trabalhos arrogantes e ególatras que provocam, em seus leitores, apenas um justo cansaço.

Quem já sabe da impossibilidade da representação não tem medo da linguagem simples, dos sentidos e afetos precários.

Neste caminho, a partir do vazio e do desamparo escancarados por Samuel Beckett, Ian McEwan avança produzindo um efeito frágil e delicado de beleza.

Uma beleza moderna que não é necessariamente fruto do que se vislumbra em uma obra, mas que surge da experiência de contato com esta criação. É possível que a novidade (e mesmo a vitalidade) de um trabalho artístico não esteja na sua forma. Depois do modernismo e pós-modernismo não importa mais o modelo, pode-se usar qualquer imagem.

Com a sociedade do espetáculo, levamos ao extremo a capacidade de organizar o mundo pela forma, pela representação. A necessidade de inovação agora exige se experimentar em uma obra algo que está além da aparência, além do sentido.

Romper com a idolatria, com o império da imagem, talvez seja um dos grandes desafios deste nosso tempo. No século 21 as exigências para a mulher de César são maiores: não basta ela ser e nem muito menos parecer honesta.

sexta-feira, 13 de março de 2009

NÃO EXISTE CRISE NA CASA BRANCA

Na semana de Carnaval, ainda cheio de entusiasmo pela posse de Obama como presidente dos EUA, resolvi assistir, pela TV, ao seu primeiro discurso no congresso americano. À medida que os parlamentares e demais convidados gastavam as palmas das mãos em aplausos quase contínuos para as palavras do presidente, foi crescendo em mim um incômodo diante do que via e ouvia.

Obama reconheceu que o seu país passa por uma grave crise, mas os americanos não precisam se preocupar, pois afinal ele sabe o roteiro para tirá-los do buraco, basta aplicar seus planos e os EUA voltarão a ocupar a dianteira do mundo.

Ouvindo suas promessas, entende-se que os culpados pela crise foram os malvados conservadores que o antecederam e que governaram privilegiando os mais ricos e gananciosos empresários americanos. Então, seu governo moralizante vai dar atenção para o povo: chega de executivos com seus jatinhos, vamos taxar os mais ricos para dar educação e saúde públicas para toda a população. O Estado vai cuidar dos pobres abandonados e defender a inocente classe média das enganações dos inescrupulosos agentes financeiros.

Pensava (e ainda quero apostar) que Obama representava a possibilidade de uma nova forma de relacionamento entre governo e sociedade, entre os EUA e o mundo. O discurso que assisti vai em outra direção: velhas e mofadas receitas.

Dizer que os problemas da maioria da população são devidos à vilania de uma pequena parte podia ser moderno e revolucionário em 1789 ou, no máximo, em 1917, com a Revolução Russa. Divisão de classes, exploradores e explorados, culpados e inocentes, já não cola mais em 2009. A crise atual é de responsabilidade de toda a população, de suas crenças e expectativas. Para que servem os governos democráticos se não para demonstrar isto? Que os eleitores são responsáveis por aqueles que elegem e por acreditar em suas promessas. Onde está o país em que um presidente recomendou que todas as pessoas deveriam pensar no que poderiam fazer pelo país e não no que o governo poderia fazer por elas? Se cada cidadão, seja dos EUA ou de qualquer outro lugar do mundo, não se perguntar sobre seu papel nos impasses que vivemos, se não houver mudanças individuais, continuaremos sem poder avançar.

Outro pensamento arcaico e moribundo defendido por Obama em sua apresentação, foi o de que os EUA deveriam voltar a liderar o mundo e que o governo do país tem de defender os empregos de seus cidadãos que estariam sendo levados para outros países. Nacionalismo, a esta altura do campeonato, é no mínimo inoportuno. O presidente Lula, pelo menos neste aspecto, se mostra mais avançado e perspicaz ao combater o protecionismo como remédio para a crise.

Estamos vivendo problemas globalizados que ameaçam, antes de tudo, nosso meio ambiente. Acabou a época em que o inimigo era o outro, em que podíamos ficar perdendo tempo em guerras contra adversários imaginários. A humanidade agora está sendo chamada para resolver um problema real. Não dá mais para ficarmos bancando divisões ilusórias como ocidente/ nações islâmicas, primeiro mundo/países pobres, americanos/ norte-coreanos. Estamos todos desamparados no mundo. Seria melhor nos unirmos em nossa desgraça do que correr o risco de não darmos conta de enfrentar os desafios que a realidade nos coloca.

Além das ideias, a coreografia apresentada por Obama e sua plateia também me trouxe recordações desconfortáveis. O presidente tentava demonstrar total segurança em suas frases, nenhuma alteração, nenhum vacilo, nenhuma modulação afetiva, tudo dentro do roteiro para trazer segurança aos americanos e recuperar o orgulho nacional. Os parlamentares responderam se levantando e aplaudindo dezenas de vezes. Lembrou-me as reuniões motivacionais de final de ano das empresas nas quais cada empregado tem de aplaudir o discurso dos chefes como um macaco adestrado para demonstrar que veste a camisa da companhia que está prestes a demiti-lo. Um amigo jornalista, que também assistia ao espetáculo, fez uma associação mais preocupante: os inflamados discursos de Hitler que procuravam resgatar o orgulho e o entusiasmo de uma Alemanha derrotada e falida. Ali, do mesmo modo, se via um orador convicto que tentava trazer à tona o passado de glória e a primazia dos valores do seu povo. Espero que esta seja uma semelhança enganosa.

É um grande erro acreditar que a resposta para a crise seja promover o orgulho patriótico. Alguns dos grandes desastres na história da humanidade tiveram com pano de fundo uma união patriótica em defesa de objetivos comuns. Um indivíduo identificado a uma coletividade, a uma massa, é capaz dos piores crimes. A responsabilidade pelos atos vem sempre do exercício solitário da individualidade. O espetáculo de Obama e seus companheiros congressistas me pareceu, antes de tudo, um sinal de negação dos problemas que os EUA e o mundo atravessam.

O presidente demonstra querer rapidamente cobrir com muito dinheiro todos os buracos e furos de seu país. Bilhões para salvar os bancos e empresas em processo de falência, bilhões para recuperar a educação e saúde dos americanos, bilhões para pesquisas para se evitar os danos do aquecimento global. Basta ter dinheiro e trabalhar duro para tudo se resolver. Mas o velho modelo americano pode não funcionar mais. A praticidade matemática não convence como antes. Os americanos estão desorientados em um mundo em que um mais um não é igual a dois.

Melhor seria aprofundar o questionamento sobre a crise global. Será que ela não demanda que os americanos abandonem antigas crenças, que estejam abertos a novas ideias, a novas possibilidades de organização da realidade? Os EUA representaram, como nação, uma inovação em relação às tradicionais visões de mundo européias. Talvez, para avançar, tenham agora de abrir mão das suas receitas. Mas um processo de renovação pede que não se negue o buraco. Ao contrário, deve-se encará-lo e, a partir dele, construir uma nova realidade.

Obama deveria realmente entrar em crise, uma crise da verdade, uma crise de suas crenças, modelos e fórmulas prontas. Se haver com a incerteza, olhar para a sombra. Assim, poderá ajudar na invenção do mundo novo que a realidade atual do planeta exige.

Presidente Obama, demita seus marqueteiros, recuse o trabalho de ghost writers, rasgue seus livros de psicologia motivacional, esqueça que é o primeiro presidente americano negro, não dê bola para as comparações com Lincoln, Roosevelt e Kennedy, não acredite nas lições das crises econômicas passadas, desista do orgulho patriótico, abomine Michael Moore, afaste-se das pesquisas de opinião, fuja das estatísticas, duvide de gráficos e tabelas, dê as costas para seus índices de aprovação, não se preocupe em passar uma boa imagem e, mais importante, vivencie um pouco de solidão.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

BILL GATES E PARIS HILTON

Dois termos usados com frequência pelos comentaristas da atual crise econômica mundial me causam estranheza por uma incapacidade pessoal de compreender minimamente o seu significado: mercado livre e economia real.

Até algum tempo atrás, a moderna orientação econômica pregava o mercado livre: uma economia sem restrições, controles e proibições, guiada pelo acaso, encontraria sua própria regulação e conduziria os povos que acolhessem esta ideia a um acumular de riquezas sem fim. Agora, todos os analistas apontam a crença na liberdade do mercado como a culpada pela turbulência que estamos sofrendo. Clamam pela volta de uma autoridade vigilante que controle, através do medo da punição, o desvario dos financistas gananciosos e irresponsáveis. O papel de tutor ou polícia da economia deve retornar ao Estado.

Mas o mercado livre seria realmente livre? Não consigo acreditar nesta possibilidade. O mercado é um conceito idealizado que, na prática, é composto e exercido por seres humanos. E seres humanos, quando livres, tendem a ser guiados por vícios e repetições. Um grande vício humano é se mostrar irresponsável quando lhe é dada a liberdade. As pessoas não sabem o que fazer diante desta condição e, na maior parte das vezes, correspondem à convicção profundamente arraigada de que é perigoso não termos proibições. A antiga ilusão de que, sem um controle externo de uma autoridade, um acaba por fazer mal ao outro.

Mas o problema que enfrentamos atualmente é que o remédio apontado pelos especialistas já se mostrou ineficaz. O Estado, chamado para bem cuidar do convívio humano, assim como o mercado, é integrado por pessoas com os mesmos descontroles que aquelas a quem ele deveria regular. E os vícios de alguém investido do poder de controlar os outros, a história já apontou, são: corrupção, autoritarismo, violência e paralisia das ideias. Na verdade estamos trocando a crença no mercado livre pela crença no Estado livre. Sabemos que as duas são enganosas. Talvez a própria divisão entre sociedade e Estado se revele um engodo.

É possível que uma melhor resposta para a crise atual passe por sairmos do vaivém de liberdade e controle, liberalismo e estatismo. E não se trata de encontramos o bom equilíbrio entre presença estatal e economia livre, uma regulando a outra. Equilíbrio é outra coisa que não se aplica aos habitantes deste planeta. Este deve ser o momento dos seres humanos aprenderem a seguir em frente sendo responsáveis pela liberdade histórica que alcançaram.

Para entendermos porque, até este momento, não conseguimos avançar , talvez devêssemos olhar para o que deu errado em nossa trajetória de exercício da liberdade. O que nos frustrou, quais expectativas não se cumpriram, para que recuássemos, entrássemos em recessão e perdêssemos o entusiasmo anterior.

Usamos a liberdade financeira para seguir a promessa de que poderíamos facilmente nos tornar ricos e que a riqueza, entendida como o acúmulo de bens, nos levaria a um status social mais elevado do que os outros, que seríamos invejados e felizes. Da aposentada inglesa que aplicou economias em fundos islandeses que prometiam rendimentos exorbitantes aos americanos que hipotecaram suas casas e acreditaram em créditos sem limites, todos se entregaram sem questionamentos à promessa de fartura e sucesso.

E agora, facilmente apontamos os financistas mentirosos e seus bônus milionários como os culpados pela crise. A inocente e crédula população dos países ricos não tem nada a ver com o pato. Neste modelo de culpados e vítimas, seria fácil resolver a retração econômica: vigilância e cadeia para os agentes financeiros e fim dos seus imorais benefícios. Alguns planos lançados por governos (como o norte-americano) caminham nesta direção. É provável que não alcancem êxito.

A origem (e, por isto, também a solução) da crise pode estar relacionada ao outro termo cujo significado prático me escapa: economia real. Os financistas teriam criado uma economia artificial, especulativa, sem relação direta com a produção de bens reais e concretos. Mas a base de qualquer economia não é uma artificialidade, uma convenção baseada em um jogo de especulações e convencimentos? Nunca existiu precisão e objetividade na economia. Qual o valor real de qualquer produto? Por que uma bolsa Prada vale mais que um boneco de barro de um artesão do Nordeste brasileiro ou vice-versa? Porque alguém conseguiu convencer outros que assim deveria ser. O valor que os seres humanos atribuem às coisas não é fruto de uma matemática precisa. As demandas são as mais variadas e indefinidas. O que os distúrbios financeiros atuais escancararam foi a economia ficcional na qual sempre estivemos mergulhados.

Estamos vivendo uma crise de lastros. No desespero e na insegurança, estamos tentando fazer novamente sólidos castelos que há muito já ruíram, como o Estado regulador.

A crise começou com a perda de confiança na capacidade econômica dos americanos. Trata-se, portanto, de uma crise de convencimento. E todas as explicações que têm sido usadas pelos diferentes governos e analistas econômicos desde o início da turbulência parecem não nos convencer. Não vamos recuperar o entusiasmo com argumentos falidos.

No processo de recuperação, de nada adianta os países emergentes tentarem fazer suas economias avançar copiando a receita que faliu nos países ricos. Não dá mais para ser rico como antes: crescer a altas taxas anuais para dentro de dez ou vinte anos se deparar com a mesma crise das atuais nações desenvolvidas. Vai crescer e puxar os outros quem souber inventar uma maneira de criar entusiasmo, quem conseguir defender novas crenças que tenham maior poder de convencimento. O país que tiver a ousadia de arriscar novos caminhos e não ficar repetindo sistemas já furados do passado, como o neo-socialismo venezuelano ou outro estatismo qualquer.

Para sair da crise atual, talvez devêssemos encontrar alguma maneira de assumir a imaterialidade das nossas relações, sejam elas econômicas ou não. Mas o problema desta possibilidade é que ela demanda a reinvenção das nossas expectativas de satisfação, dos nossos modelos de felicidade. Em um mundo em que sabemos que os lugares sociais são imaginários e que a satisfação não depende dos produtos que adquirimos, mas que necessita ser criada por cada um, não há espaço para se viver tendo como meta apenas acumular bens e ter reconhecimento e fama.

Não sei ao certo como será o novo modelo de felicidade, mas algo me diz que duas categorias de seres humanos, por serem muito representativas do sistema em decadência, estão com as suas existências ameaçadas: os super-milionários e as celebridades.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O CALÍGULA DE CAMUS

Por ocasião da montagem da peça Calígula, do escritor franco-argelino Albert Camus, feita pelo diretor Gabriel Villela (ainda em cartaz em São Paulo), tive a oportunidade de ler a tradução do texto original feita pelo jornalista e dramaturgo Dib Carneiro. O texto me surpreendeu pela força e por trazer questões muito necessárias para os dias em que vivemos, uma atualidade que talvez o próprio Camus não pudesse prever ao escrever a peça no final da década de 30 do século passado. Segue, abaixo, um comentário sobre esta provocadora obra.

A leitura de Calígula, de Albert Camus, é uma experiência perturbadora. Ao final do texto, em um primeiro impulso diante do incômodo, fica-se com a vontade de ignorá-lo, de deixá-lo de lado. Mas o impacto persiste e cobra, é necessário se haver com ele. Se a obra perturba é porque questiona certezas que parecem organizadoras. Seria mais fácil se fosse possível enquadrar o personagem Calígula dentro de crenças estabelecidas. Se, de alguma forma, se conseguisse classificá-lo como louco, devasso, tirano, transtornado pela perda do amor, psicopata ou psicótico. Explicá-lo e defini-lo como doente e anormal. Assim, do mesmo modo que se retira um tumor, bastaria eliminar Calígula para que tudo ficasse bem. Aí se poderia ser solidário com os revoltosos que o matam no final da peça. Mas não. Assim como o personagem de Cipião, não se pode deixar de reconhecer que Calígula é sedutor e portador de alguma verdade íntima. O Calígula de Camus não é imoral, mas talvez amoral. É alguém que tenta ser livre, se colocar fora das regras, da moral, além do que é certo ou errado, do bem e do mal. Ele quer igualar as coisas, acabar com as diferenças ilusórias, mostrar o vazio essencial que nivela tudo. Uma força anárquica que zomba, questiona toda lei e ordem sobre as quais se tenta estruturar o mundo. Ele desnuda hipocrisias. Faz da moral uma máscara e não um rosto, uma realidade concreta. Os enganadores (ou quem sabe cegos) são os seus justiceiros que querem o retorno da razão, da ordem, de seus lugares imaginários de poder. Como Calígula aponta em um trecho do texto, o teatro tem este mesmo lugar de desconserto. Se um ator pode interpretar vários personagens, vestir várias máscaras sem se identificar com nenhuma delas, se todos podem ser deuses no palco, então não existe uma imagem definitiva, acabada. Mas a liberdade perseguida por Calígula, a quebra de certezas e de limites, assusta. A atualidade da obra de Camus talvez seja esta. A humanidade vive um época de liberdade sem igual na sua história. As crenças e as autoridades, tudo que organizava a sociedade perdeu ou está perdendo a consistência.Vive-se uma época de incertezas. Até a economia, o capital, que parecia o centro do mundo (como debocha Calígula), tem os seus dogmas abalados. As morais tradicionais faliram. As pessoas estão livres mas com medo. Calígula está mais vivo do que nunca, como é profetizado no final da peça. E não é mais possível ignorá-lo ou eliminá-lo com punhaladas. O que fazer: todos se tornarão loucos ou assassinos sem limites? É melhor viver na hipocrisia ou em um cinismo moralista e não querer saber do desejo do impossível que está dentro de cada um? O texto de Camus pode indicar uma alternativa. Há um personagem e uma condição que estão o tempo todo presentes, mesmo que através da ausência: a lua e a impossibilidade de tê-la. E talvez esta impossibilidade seja hoje a única verdade e chance de organização quando não dá mais para esconder Calígula debaixo de uma moral qualquer. A peça apresenta dois homens que lidam de maneiras diferentes com o impossível e com o desejo de reinventar o mundo. Os dois são senhores das coisas. Um é imperador, senhor dos corpos. O outro, Cipião, poeta, senhor das palavras. O escritor, o poeta, na sua ficção, guia o destino de seus personagens, pode fazê-los morrer se for este o seu capricho. Mas o imperador, por mais tirano que seja, se depara com a impossibilidade real de conquistar o mundo. Os corpos são sempre rebeldes a qualquer tentativa de dominá-los. Este corpo celeste, a lua, prova isto. E é com esta insatisfação que Calígula se depara no final. Mas é possível que o poeta tenha uma sorte melhor. Na ficção, na fantasia, se pode ter a lua, se pode dormir com ela. A única maneira de se ter a lua é poeticamente e não enquanto realidade concreta. Uma forma de ter o impossível e ao mesmo tempo manter o impossível.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A VIAGEM DA BELA JUNIE

Christophe Honoré talvez seja o diretor de cinema em atividade que mais questiona e investiga as particularidades dos relacionamentos amorosos na atualidade.

Em seu último trabalho, A Bela Junie, podemos acompanhar as desventuras de jovens estudantes e professores na busca de um amor. Ao terminar o filme, os espectadores mais românticos podem sair do cinema com uma certa melancolia. Os mais apaixonados personagens, aqueles que defendiam uma união sincera entre os amantes, aqueles que não abriam mão de encontrar alguém para quem devotar e receber um amor exclusivo e pleno, têm destinos trágicos e solitários. O ideal de amor não se realiza, a infelicidade permanece. Mas os práticos, aqueles que aceitam que seus parceiros sejam infiéis, que os relacionamentos sejam curtos e superficiais, nada muito além de sexo, também não parecem felizes em sua resignação.

Será mais desejável reconhecer que a felicidade amorosa não existe, que ela é uma ilusão boba, que não devemos perder tempo com sonhos irrealizáveis e apenas se contentar com as pequenas satisfações, em garantir uma trepada, um prato cheio de comida ou uma adrenalina qualquer? É difícil olhar para a bela Junie, sozinha em sua viagem no final do filme, e não ser solidário com a sua busca de amor. Por mais que a realidade pareça dizer o contrario, é como se, ao abrir mão disto, estivéssemos abrindo mão de nós mesmos, de que a vida tenha qualquer valor, razão ou encanto de ser vivida. Como se aqueles que desistiram da procura amorosa fossem mortos vivos, alguém que apenas cumpre tabela à espera de uma morte que não deve tardar. Sabemos que, no fundo de todo resignado, esconde-se uma Junie.

Um paradoxo humano estranho. Por mais que percebamos que encontrar um outro que nos traga felicidade é impossível, que os amores mais cedo ou mais tarde podem passar, que ninguém nos é 100% fiel, não conseguimos desistir do desejo de realizar este impossível.

O trabalho de Honoré trata justamente deste conflito. É interessante que o roteiro do filme tenha se baseado em um livro do século 17, La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette. Isto demonstra como o dilema amoroso sempre perseguiu homens e mulheres. Mas A Bela Junie consegue ser contemporâneo ao colocar questões e impasses que a quebra de valores e padrões rígidos de comportamento trazidos pela modernidade provocou nos relacionamentos afetivos.

Até pouco tempo atrás , e mesmo para muitos hoje em dia, os relacionamentos afetivos tinham um componente amoroso e outro de obrigação social. Na maior parte das vezes, dissociados um do outro. Namorava-se e se casava com alguém por um dever em relação à família e à sociedade, mas ficava-se com a impressão de que esta obrigação impedia a pessoa de encontrar o seu verdadeiro amor.

Os práticos daquela época diziam que com o tempo se aprendia a gostar e respeitar aqueles que o dever pôs em nosso caminho. As paixões eram consideradas loucuras de pessoas imaturas ou pertencentes apenas às obras de ficção. Os compromissos sociais impediam a realização afetiva plena. O amor era cerceado por inúmeras proibições. Aqueles que se entregavam às paixões, como alguns poetas, deveriam ter uma vida degradada e breve.

Mas, nas últimas décadas, as limitações foram caindo por terra. Aprovação do divórcio, independência econômica dos parceiros, separação total de bens, casais que apenas moram junto sem oficializar o relacionamento, métodos anticoncepcionais, sexo sem compromisso, aceitação de uniões do mesmo sexo. É como se a casca fosse caindo e hoje tivéssemos que nos defrontar com o osso das relações amorosas. O que fazer agora que nada me impede de ser feliz com o meu ou minha amada?

A questão principal de A Bela Junie não é sobre o relacionamento entre professor e aluno, um amor proibido. Ao contrário, o que se questiona, o que nos atormenta e provoca, é o que fazer quando temos a liberdade para amar. Pode ser professor com aluna, homem com homem, mulher com mulher, velha com novo, rico com pobre.

De repente as famílias de Romeu e Julieta fizeram as pazes e os apaixonados amantes não precisam mais se matar para realizar o seu amor. Terão agora de bancar e sustentar a sua afeição, já que nada exterior, nenhuma desculpa os afasta desta felicidade. Provavelmente, assim que Romeu chegar bêbado em casa e só prestar atenção no jogo de futebol, Julieta passe a sonhar com o passado de brigas familiares ou comece a desconfiar que se enganou, que talvez Romeu não seja o homem da sua vida.

A saída mais frequente a que temos assistido diante da ausência dos culpados pela nossa infelicidade amorosa é dizer que o próprio amor é uma ilusão. Esta seria a verdade prática dos nossos tempos. Em essência, ela não difere da praticidade anterior. Os práticos atuais são os resignados do amor. É a realidade que se tenta impor agora. Os moralistas de ontem viraram os cínicos e céticos de hoje. Não se diz mais que a paixão é uma deformação do diabo que perturba a boa ordem familiar, mas uma patologia ilusória que vai contra a natureza animal humana preocupada apenas em espalhar genes egoístas. Do mito religioso passamos ao mito biológico para justificar o nosso lugar de eternos mal-amados.

O amor continua sendo visto como uma coisa para os fracos, para os acometidos pelo sofrimento de se iludir.

Mas talvez possamos dar ao dom de iludir outro lugar que não seja o do pecado, o do erro ou da doença. Em vez de percebermos as fantasias como engano, podemos interpretá-las como condição, como necessidade humana básica. Religiões, ciência, amores, tudo isto são ilusões criadas pelo ser humano na tentativa sem fim de dar conta de um mundo alheio a qualquer sentido.

Nos relacionamentos amorosos, para que o conto de fadas continue depois que as bruxas forem derrotadas, é necessário continuar escrevendo a ficção.

Junie fugiu acreditando que seu querido professor jamais poderia amá-la como ela gostaria. Que ele, no fundo, era tão enganador quanto os outros rapazes. Mas ela poderia tomar um rumo diferente: abandonar seu barco e voltar para o seu professor. Deveria apostar que se pode fazer alguém ser o seu amor, que príncipe ou vilão são invenções ou expectativas criadas. Que mudando de expectativa se pode mudar aqueles que amamos. Que ninguém é pronto no mundo, que estamos todos permanentemente à procura do significado de nós mesmos. Podemos oferecer e insistir em significações ou interpretações novas para aqueles que amamos. Uma possibilidade de perceber quem se ama para além do eixo perfeição/imperfeição, que se veja o outro como um mistério permanente e encantador.

O nosso amor não é a nossa cara-metade perdida no mundo à espera de que uma sorte ou ventura qualquer a coloque em nosso caminho. Amor não é descoberta, mas é criação. Não é espera, nem dádiva, mas ação, persistência. Os que aguardam seu verdadeiro amor chegar estão sempre insatisfeitos com aqueles que encontram na vida. Carregam permanentemente a dúvida se determinada pessoa é a certa. Guardam a esperança de que exista alguém melhor, mais interessante, esperando ou procurando por elas. Para realizar um amor, é possível que tenhamos de descobrir que o que ficou de fora não existe, que podemos contar somente com aquilo que é inventado. Não há amores perdidos, mas se pode ganhá-los se apostarmos em sua criação.

Bons amantes devem ser bons ficcionistas.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O HOMEM BOM

Em um debate na campanha presidencial norte-americana de 2004, perguntaram aos candidatos George Bush e John Kerry o que eles pensavam sobre a legalidade do aborto. Bush, em tom decidido, disse que respeitava as leis que permitiam esta prática em seu país, mas concluiu afirmando sua opinião contrária ao aborto devido às suas crenças e valores religiosos. Já Kerry, um tanto titubeante, respondeu que defendia a legalidade porque ela era democrática ao permitir que tanto aqueles a favor como os contrários à interrupção da gravidez pudessem agir de acordo com as suas consciências. Entretanto, de maneira diversa do seu concorrente, o candidato democrata se esquivou de dar sua opinião pessoal sobre o aborto, se era favorável ou não. É provável que tenha se comportado assim para não perder votos no temido eleitorado conservador americano.

Independente de estar certo ou não em suas crenças, George Bush saiu do debate com uma imagem de firmeza e segurança, e Kerry como alguém fraco e sem confiança em si próprio. Por fim, os eleitores, em sua maioria, acabaram se decidindo por Bush. E o mundo sofreu mais quatro anos com seu desastroso governo.

Lembrei desta história depois de assistir ao filme O Homem Bom, do diretor Vicente Amorim e que está atualmente em cartaz. No filme, um professor universitário, bom pai e bom filho, perde a oportunidade de ajudar um amigo judeu de escapar da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo não concordando com os princípios políticos de Hitler e seus companheiros, ele aceita promoções oferecidas pelo partido nazista. Inicialmente não acredita (ou não quer saber) na possibilidade de que um mal maior possa vir do entusiasmado movimento que prometia colocar ordem, trazer segurança e recuperar o orgulho da Alemanha. No final, tentando encontrar o amigo feito prisioneiro, o bom professor termina por se deparar com a verdade dos campos de concentração. Surpreso e tocado conclui: é real!

O que une a lembrança do debate na eleição americana e o filme de Amorim é que nos dois casos algo deixou de ser dito ou feito em nome de se manter uma boa imagem. John Kerry não quis causar uma má impressão no eleitorado conservador, enquanto o professor não quis queimar o seu filme junto aos seus benfeitores nazistas. Um achava que, assim, poderia ganhar as eleições, e o outro pensava em receber promoções.

O homem bom talvez tenha outro compromisso que não seja o de manter uma boa imagem em seu meio social, em ser um cidadão exemplar. Seu compromisso maior é com algo íntimo, algo que percebe como verdadeiro, mesmo que seja contra a verdade corrente na sociedade em que vive, mesmo que se descubra solitário em seus questionamentos, mesmo que isto possa lhe trazer riscos, que possa lhe causar prejuízos econômicos e profissionais ou levar à separação familiar. Ele, por mais que a princípio tente não saber da verdade que lhe persegue, acaba por reconhecê-la e paga o preço de defendê-la. É um homem que não engana a si próprio. Mais do que salvar sua pele, o homem bom vive por sua honra pessoal. Sem isto, percebe que a vida humana não tem valor, que se é apenas um boneco que segue as massas, um maria vai com as outras. Quem assistiu ao belo filme alemão A Vida dos Outros pode entender melhor o que é ser um homem honrado, um homem bom.

Facilmente identificamos o que deveria ter sido feito, qual causa boa defender diante dos regimes autoritários do passado. Sabemos que os homens bons foram aqueles que combateram os nazistas, os soviéticos ou as ditaduras militares da América Latina.

Mas e hoje, onde podemos perceber a necessidade de pessoas honradas?

Talvez pudéssemos começar pela política. Homens e mulheres que contrariem verdades estabelecidas, que enfrentem o medo do suposto conservadorismo do eleitorado. Quantos políticos brasileiros, por exemplo, têm a coragem de vir a público defender o aborto, a descriminalização do uso de drogas ou dizer que não acredita em Deus? Poucos, a maioria está preocupada em manter a sua pretensa boa imagem.

Não sei se o eleitorado julga um político por aquilo que ele diz ou defende. É provável que valha mais a atitude. Ninguém gosta de quem fica em cima do muro. Os conservadores parecem mais sinceros na defesa de seus princípios, se mostram mais confiantes e não têm vergonha de dizer publicamente o que pensam.

Os liberais, os que praticam uma vida diferente dos valores morais tradicionais, parecem indecisos e envergonhados de suas atitudes. Quando tentam apoiar uma causa contrária ao conservadorismo, usam de argumentos indiretos, como as vantagens econômicas de se legalizar o aborto, e nunca uma afirmação direta do seu valor ético. Por escamoteá-las, passam a impressão de que suas práticas e crenças são erradas e pecaminosas.

E se os políticos acreditam e esperam um eleitor retrógrado e conservador, é desta maneira que as pessoas vão se comportar, até pela falta da opção de uma outra expectativa.

Deste modo, vamos assistindo ao crescimento de bancadas religiosas e outros grupos moralistas. Governantes de esquerda que, no seu íntimo, não acreditam em Deus, fazem concessões conservadoras para ficar bem com o eleitorado. Dia após dia, leis restritivas à liberdade individual são criadas em nome da saúde e da segurança coletiva, tudo na maior normalidade. Até que um dia, novamente, a dura realidade caia sobre as nossas cabeças. Espero que neste momento tenhamos, pelo menos, a dignidade de não se permitir o pior e o mais inútil dos pensamentos: poderia ter feito e não fiz.