quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

BILL GATES E PARIS HILTON

Dois termos usados com frequência pelos comentaristas da atual crise econômica mundial me causam estranheza por uma incapacidade pessoal de compreender minimamente o seu significado: mercado livre e economia real.

Até algum tempo atrás, a moderna orientação econômica pregava o mercado livre: uma economia sem restrições, controles e proibições, guiada pelo acaso, encontraria sua própria regulação e conduziria os povos que acolhessem esta ideia a um acumular de riquezas sem fim. Agora, todos os analistas apontam a crença na liberdade do mercado como a culpada pela turbulência que estamos sofrendo. Clamam pela volta de uma autoridade vigilante que controle, através do medo da punição, o desvario dos financistas gananciosos e irresponsáveis. O papel de tutor ou polícia da economia deve retornar ao Estado.

Mas o mercado livre seria realmente livre? Não consigo acreditar nesta possibilidade. O mercado é um conceito idealizado que, na prática, é composto e exercido por seres humanos. E seres humanos, quando livres, tendem a ser guiados por vícios e repetições. Um grande vício humano é se mostrar irresponsável quando lhe é dada a liberdade. As pessoas não sabem o que fazer diante desta condição e, na maior parte das vezes, correspondem à convicção profundamente arraigada de que é perigoso não termos proibições. A antiga ilusão de que, sem um controle externo de uma autoridade, um acaba por fazer mal ao outro.

Mas o problema que enfrentamos atualmente é que o remédio apontado pelos especialistas já se mostrou ineficaz. O Estado, chamado para bem cuidar do convívio humano, assim como o mercado, é integrado por pessoas com os mesmos descontroles que aquelas a quem ele deveria regular. E os vícios de alguém investido do poder de controlar os outros, a história já apontou, são: corrupção, autoritarismo, violência e paralisia das ideias. Na verdade estamos trocando a crença no mercado livre pela crença no Estado livre. Sabemos que as duas são enganosas. Talvez a própria divisão entre sociedade e Estado se revele um engodo.

É possível que uma melhor resposta para a crise atual passe por sairmos do vaivém de liberdade e controle, liberalismo e estatismo. E não se trata de encontramos o bom equilíbrio entre presença estatal e economia livre, uma regulando a outra. Equilíbrio é outra coisa que não se aplica aos habitantes deste planeta. Este deve ser o momento dos seres humanos aprenderem a seguir em frente sendo responsáveis pela liberdade histórica que alcançaram.

Para entendermos porque, até este momento, não conseguimos avançar , talvez devêssemos olhar para o que deu errado em nossa trajetória de exercício da liberdade. O que nos frustrou, quais expectativas não se cumpriram, para que recuássemos, entrássemos em recessão e perdêssemos o entusiasmo anterior.

Usamos a liberdade financeira para seguir a promessa de que poderíamos facilmente nos tornar ricos e que a riqueza, entendida como o acúmulo de bens, nos levaria a um status social mais elevado do que os outros, que seríamos invejados e felizes. Da aposentada inglesa que aplicou economias em fundos islandeses que prometiam rendimentos exorbitantes aos americanos que hipotecaram suas casas e acreditaram em créditos sem limites, todos se entregaram sem questionamentos à promessa de fartura e sucesso.

E agora, facilmente apontamos os financistas mentirosos e seus bônus milionários como os culpados pela crise. A inocente e crédula população dos países ricos não tem nada a ver com o pato. Neste modelo de culpados e vítimas, seria fácil resolver a retração econômica: vigilância e cadeia para os agentes financeiros e fim dos seus imorais benefícios. Alguns planos lançados por governos (como o norte-americano) caminham nesta direção. É provável que não alcancem êxito.

A origem (e, por isto, também a solução) da crise pode estar relacionada ao outro termo cujo significado prático me escapa: economia real. Os financistas teriam criado uma economia artificial, especulativa, sem relação direta com a produção de bens reais e concretos. Mas a base de qualquer economia não é uma artificialidade, uma convenção baseada em um jogo de especulações e convencimentos? Nunca existiu precisão e objetividade na economia. Qual o valor real de qualquer produto? Por que uma bolsa Prada vale mais que um boneco de barro de um artesão do Nordeste brasileiro ou vice-versa? Porque alguém conseguiu convencer outros que assim deveria ser. O valor que os seres humanos atribuem às coisas não é fruto de uma matemática precisa. As demandas são as mais variadas e indefinidas. O que os distúrbios financeiros atuais escancararam foi a economia ficcional na qual sempre estivemos mergulhados.

Estamos vivendo uma crise de lastros. No desespero e na insegurança, estamos tentando fazer novamente sólidos castelos que há muito já ruíram, como o Estado regulador.

A crise começou com a perda de confiança na capacidade econômica dos americanos. Trata-se, portanto, de uma crise de convencimento. E todas as explicações que têm sido usadas pelos diferentes governos e analistas econômicos desde o início da turbulência parecem não nos convencer. Não vamos recuperar o entusiasmo com argumentos falidos.

No processo de recuperação, de nada adianta os países emergentes tentarem fazer suas economias avançar copiando a receita que faliu nos países ricos. Não dá mais para ser rico como antes: crescer a altas taxas anuais para dentro de dez ou vinte anos se deparar com a mesma crise das atuais nações desenvolvidas. Vai crescer e puxar os outros quem souber inventar uma maneira de criar entusiasmo, quem conseguir defender novas crenças que tenham maior poder de convencimento. O país que tiver a ousadia de arriscar novos caminhos e não ficar repetindo sistemas já furados do passado, como o neo-socialismo venezuelano ou outro estatismo qualquer.

Para sair da crise atual, talvez devêssemos encontrar alguma maneira de assumir a imaterialidade das nossas relações, sejam elas econômicas ou não. Mas o problema desta possibilidade é que ela demanda a reinvenção das nossas expectativas de satisfação, dos nossos modelos de felicidade. Em um mundo em que sabemos que os lugares sociais são imaginários e que a satisfação não depende dos produtos que adquirimos, mas que necessita ser criada por cada um, não há espaço para se viver tendo como meta apenas acumular bens e ter reconhecimento e fama.

Não sei ao certo como será o novo modelo de felicidade, mas algo me diz que duas categorias de seres humanos, por serem muito representativas do sistema em decadência, estão com as suas existências ameaçadas: os super-milionários e as celebridades.

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