quarta-feira, 15 de julho de 2009

SE, JIE ZII E ZIE

Desejo e Perigo (Se, Jie no título original em Chinês), filme do diretor Ang Lee atualmente em cartaz nos cinemas, parece tratar de temas já vistos nas telas em outras produções: mocinha envolvida na luta pela libertação de seu país torna-se espiã, se faz passar por amante do vilão e, no fim, contra a sua vontade, acaba se apaixonando por ele.

Mas a percepção de falta de novidade só funciona nos resumos de divulgação do filme que tentam atrair o maior público possível descrevendo o trabalho de Ang Lee como um thriller bem feito destinado ao entretenimento de uma audiência que busca somente um pouco de adrenalina.

Quem assistir ao filme com um mínimo de atenção pode sair do cinema com algo bem mais valioso do que uma pretensa descarga hormonal. Pode-se descobrir que Desejo e Perigo é uma obra delicada e, ao mesmo tempo, provocante e surpreendentemente inovadora.

A novidade do filme está no questionamento que ele provoca de valores sociais a que estamos acostumados. Não necessariamente dos valores caretas que de uma forma geral já sabemos ultrapassados, como virgindade antes do casamento ou sexo apenas com fins reprodutivos. O que Desejo e Perigo interroga é muito mais atual e perturbador: será que o mais importante em nossas vidas é lutar por alguma ideia que temos de um mundo melhor, mais harmônico e justo?

Algumas décadas atrás as pessoas saíam às ruas ou mesmo pegavam em armas para defender um planeta com menos desigualdade: combatiam os dominadores e exploradores dos mais pobres e excluídos. Buscavam eliminar as injustiças perpetuadas pelos donos do poder que viviam de privilégios e prazeres no meio de uma massa excluída e sofredora.

Mas após o fracasso dos sistemas comunistas, da pobreza e da feiúra socializadas de Cuba e companhia, mesmo que ainda permaneçam alguns Chávez perdidos no passado, foi-se embora a última chance de encanto pelas utopias. Como resultado desta desilusão, passou-se a defender que a organização social capitalista era o fim do desenvolvimento humano, que não haveria mais mudança social significativa, que teríamos chegado ao fim da história. De sonhadores de um mundo diferente, deveríamos nos resignar com uma realidade prática, definida e, porque não, cínica.

Desejo e Perigo pode oferecer uma alternativa às utopias socialistas ou ao cinismo capitalista, às imagens idealizadas de um ser humano sonhador ou resignado. No filme, jovens atores se unem para a ajudar a China a se livrar da cruel dominação japonesa. Idealistas e corajosos, se arriscam em nome do seu ideal de libertação. Entretanto, não conseguem ver realizado o seu sonho. São traídos pela companheira que, atordoada pelo seu amor ao inimigo, permite que ele escape e condene ela e os seus colegas de teatro à morte.

Mas a atitude da jovem atriz de forma alguma parece um ato de fraqueza, de covardia. Ao contrário, sua escolha mostra-se corajosa e honrada. Seu compromisso maior não é com o ideal de seus camaradas. Mais importante e sincera é a sua lealdade ao amor que sente, mesmo que isto lhe custe a própria vida.

O que parece uma escolha ética egoísta pode na verdade se revelar uma nova orientação para os tempos em que vivemos, uma possibilidade de mudança para um mundo sem utopias, sem ideais de equilíbrio, harmonia e perfeição. Uma forma de sairmos do cinismo capitalista, das relações precisas e matemáticas, para encontramos o encanto, o mistério e o entusiasmo pela experiência humana.

O amor que aparece no filme não é o amor romântico idealizado de completude. Mas um amor que tira as máscaras sociais, as divisões ilusórias que nos fazem acreditar na separação entre vilões e mocinhos, entre bons e ruins. Para isto, este amor deve fazer os amantes se sentirem incompletos, imperfeitos, cheios de furos e buracos.

Deve-se fazer o outro se perceber não pleno e desejante. E é isto que o relacionamento entre a atriz e o aparente insensível burocrata do filme mostra. É como se os dois aos poucos fossem se furando e, assim, provocando o desejo um no outro. No fim não se trata mais de uma jovem frágil e idealista e de um velho autoritário e corrupto, mas de dois seres humanos que se amam pelo desamparo de suas existências. O filme exibe este processo de transformação por meio de belas e intensas cenas de sexo.

Mais do que eliminarmos os exploradores do mundo, o desafio atual é ir além da divisão entre bons e ruins, entre vilões e inocentes, entre agressores e vítimas. Sem a quem culpar pela nossa infelicidade temos de nos deparar com a nossa impossibilidade de encontrar um universo justo e equilibrado.

Deste modo, poderemos encontrar uma nova orientação ética que não seja por um ideal final, por uma promessa de perfeição que nunca vem. Em vez de expectativas ilusórias, nos nortearmos por aquilo que o universo nos traz de real. Um mundo não do que deveria ser, mas um mundo do que é, do que se apresenta para nós. Uma realidade que está sempre exigindo respostas renovadas, uma obra em movimento mas sem um fim. Em vez de frustração, queixa, desânimo e arrependimento, podemos gastar nossos esforços em criar soluções. Só contar com aquilo que temos e não com aquilo que deveríamos ter. Em vez de uma felicidade que depende de encontrar o que nos falta, uma possibilidade de ser feliz usando o que se tem para inventar repostas, mesmo que precárias.

Se em uma ética do ideal nossa orientação vem da esperança do encontro com a perfeição, de um por vir, de uma união com Deus na eternidade, a ética real se guia pelo que é presente, por aquilo que nos aparece, pela surpresa que o universo nos oferece, por aquilo que nos anima em nossa incompletude. Se não há Deus, a ética real pode se valer apenas de um simples olhar de quem está ao nosso lado, de alguém que nos provoca e em quem provocamos amor.

Zii e Zie, trabalho mais recente de Caetano Veloso, apresenta uma musicalidade estranha, dura e pouco melódica que acompanha possivelmente algumas das letras mais frescas e iluminadas da música popular contemporânea. Reproduzo abaixo a letra da última canção do álbum:

Diferentemente

Acho que ouvi numa canção de Madonna
“When you look at me I don’t know who I am”
E desentendi
Pois comigo é você quem, me olhando, detona
A explosão de eu saber quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo
Alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
E aí o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E no entanto
Diferentemente de Osama e Condoleezza
Eu não acredito em deus

Em um mundo em que não podemos mais nos guiar por uma imagem divina, por um mestre, por um ideal ou uma utopia, talvez não reste outra certeza que não seja o olhar de alguém que sabe da sua imperfeição incurável, mas que mesmo assim (ou por isto) insiste em buscar um outro para amar. No momento em que somos alvo deste olhar, encontramos a nossa única possibilidade de existência: uma invenção permanente que tenta responder a um desejo de amor para sempre impossível.

4 comentários:

Só no blog disse...

Oi, Márlio. Gosto muito de todos estes subtextos que você localiza numa obra de arte, seja um filme, um livro ou mesmo a letra de uma canção. Acho que isso, além de aumentar a nossa compreensão sobre a obra em si - e consequentemente sobre nós mesmos - apresenta um ganho extra: ao esmiuçar tanto a obra, você transcende o significado imediato que ela possa ter. E isso acaba afetando seu blog também - que fica imune aos riscos do imediatismo presentes na maioria dos blogs. Pouca importa, então, se formos ler o seu blog hoje ou daqui a cinco anos: sempre haverá algo de pertinente nele. Não desista nunca. Sérgio

Márlio Vilela Nunes disse...

Oi, Sérgio. Bom saber que questões que trago, que possíveis interpretações para obras de outros que me coloco, tiveram uso para você. Que, em vez de me afastar, elas me permitem alguma forma de comunicação, algum laço com outras pessoas. Acredite, seu comentário é fundamental para que eu possa seguir. Obrigado.

Unknown disse...

Marlio,

Seu blog me foi indicado pela minha psicanalista, e eu adorei. Gostaria de parabenizá-lo pelo trabalho. Pela forma simples de escrever, você torna acessível a nós, leigos, questões complexas do cotidiano. Continue assim.
A única "crítica" que faço é quanto à periodicidade. Entro no blog todos os dias, com sede de informação... de aprender mais e mais....mas é isso aí, mais vale a qualidade que quantidade. Obrigado por existir.

Márlio Vilela Nunes disse...

Mauro, agradeço o gentil comentário e o incentivo. Espero encontrá-lo sempre por aqui. Abraço