segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A TRANSITORIEDADE, KEATS OU NIEMEYER

É provável que dois incômodos surjam em quem assisti ao filme (acho que ainda em cartaz) O Brilho de Uma Paixão. Os dois relacionados a um sentimento de perda pela morte prematura (aos 25 anos) do poeta inglês John Keats cuja história é contada no filme. O primeiro pela perda de anos a mais de vida que teriam proporcionado ao poeta a oportunidade de continuar criando belos poemas. O segundo pela frustração diante da perda da possibilidade de Keats e sua amada conseguirem finalmente se casar e, assim, concretizar o amor que nutriam um pelo outro.

Quantos jovens artistas, no passado e ainda hoje, deixam o mundo no auge da sua criatividade, todos a nos causar o lamento das obras-primas que poderiam ter realizado caso tivessem a chance de, pelo menos, chegar à maturidade. Sendo artista ou não, toda vida que se vai ainda nos seus primeiros anos nos traz a saudade daquilo que poderia ter sido vivido e compartilhado.

Talvez fiquemos mais confortáveis diante do exemplo do arquiteto Oscar Niemeyer que, às vésperas de completar 103 anos, segue desenhando projetos de edifícios no Brasil e no mundo. Se tivesse morrido logo após fazer Pampulha, não teríamos conhecido o novo Itamaraty, o memorial JK ou o teatro do Ibirapuera. Não haveria a rampa do Planalto, as cúpulas invertidas do Congresso ou as colunas em curva do Alvorada. Brasília seria outra; tão diferente que quem sabe pudéssemos afirmar que a cidade não existiria. Mesmo que tivesse o mesmo nome, não seria Brasília. Tentar imaginá-la sem a marca do arquiteto é impossível.

Mas só sabemos o que ganhamos com a longevidade de Niemeyer porque podemos acompanhar o que ele criou com os anos que teve. Um saber posterior. No caso daqueles que viveram por períodos mais curtos de tempo, nada podemos dizer sobre o que teriam feito se tivessem a chance de uns anos a mais, nem mesmo se teriam sido mais ou menos felizes. O que não existiu, não existe. As possibilidades são infinitas.

Assim como é provável que não existisse Brasília caso Niemeyer tivesse partido aos vinte e poucos anos, se John Keats tivesse morrido aos 50 ou aos 87 anos, ele não teria sido John Keats. Pelo menos não na forma como o conhecemos. Teria sido um outro que não podemos estabelecer qual, a não ser como exercício de ficção.

Em qualquer caso, não podemos colocar o valor de uma vida naquilo que deveria ter sido realizado ou naquilo que teria faltado. Um vida curta ou uma vida centenária encontram seu valor tão somente no fato de terem um momento de começo e um momento de fim. Toda vida humana é limitada por um nascido em tal data e um falecido em tal data. Um início e um fim (ambos de um mistério absurdo e inalcançável) são as condições para a existência de uma pessoa. Se pequena ou longa, a distância entre os dois é o que menos importa. Quinze ou 108 anos não fazem muita diferença no Universo. A brevidade é que dá o contorno para uma vida. Por não serem eternas é que as coisas existem. Se há um começo, há um término. O que é eterno está fora do tempo, está fora da existência.

No entanto, passamos a vida nos queixando de não sermos eternos, de não podermos ter tudo. Muitas vezes temos medo de amar uma pessoa ou deixamos de gostar de uma coisa porque elas estão marcadas pela possibilidade de perda, por não podermos tê-las para sempre, por serem transitórias.

Em 1916, Freud publicou um pequeno texto chamado A Transitoriedade no qual ele relata o caso de um jovem escritor que o acompanhava em uma viagem e que se recusava a apreciar as belezas à sua volta porque, um dia, elas deixariam de existir.

Freud refutou o escritor defendendo que o valor e a raridade das coisas estão justamente no fato delas serem finitas, na sua brevidade. No entanto, os argumentos do psicanalista não produziram efeitos no amigo. Ele manteve o seu clamor de que só o que é eterno é que tem valor.

Quem concorda com o escritor talvez não consiga desfrutar a vida pelo fato de exigir algo que não se pode ter: a eternidade, a perfeição. Quem pede o impossível passa a vida se queixando.

Mas pensemos em como seria se, por uma fortuna qualquer, o queixoso tivesse as suas preces atendidas? Como seria a existência de uma pessoa que nunca morre, que tem todos os seu desejos atendidos, que tem tudo o que quer? A resposta é fácil: completamente sem graça, sem sabor, um tédio absoluto. Quem sabe, por isto, é que nos mantemos sempre bem afastados daquilo nos satisfaria, o nosso receio de termos aquilo que dizemos querer. Melhor e mais seguro ficar só na queixa, na espera. Ideais devem existir apenas como promessa.

Reclamamos do fato de não sermos Deus, mas morremos de medo de um dia sê-lo. Se encontrássemos a imortalidade, como no caso de nos tornarmos vampiros, rezaríamos secretamente para que alguém enfiasse uma estaca em nosso peito e nos desse um fim.

John Keats, o mesmo poeta que escreveu que tudo que é belo é uma alegria pra sempre, antes de morrer, pediu que seu nome não fosse gravado em seu túmulo. Preferiu apenas a frase “Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito n’água”. Talvez ele soubesse que a beleza e o sabor de uma vida estão na sua precariedade, na sua fugacidade, na sua inscrição na água.

domingo, 1 de agosto de 2010

SERIA ÚTIL FAZER ANÁLISE?

Uma pergunta que se ouve com freqüência é: para que serve uma análise? A pessoa que se analisou seria, depois desta experiência, mais bem resolvida, mais tranquila, mais animada, mais equilibrada, mais responsável, mais saudável, mais madura, mais bonita, mais sensual, mais inteligente, mais sábia, mais vitoriosa, mais criativa, mais bem amada ou mais feliz? Enfim, com o tratamento analítico, conseguiríamos mudar alguém de uma condição pior para uma melhor?

A possibilidade de transformar a realidade de um determinado ser humano sempre foi o grande desafio da medicina e dos seus derivados do campo da saúde mental. Se pensarmos que a busca pela cura, pelo retorno a uma ideia de normalidade, não deixa de ser uma luta contra um determinado destino (a doença) que se impõe às pessoas, tratar nada mais seria do que possibilitar uma vida melhor para alguém. Esse ideal ganhou tanta força nos dias de hoje que os tratamentos não devem apenas visar a eliminação das moléstias, mas também permitir aos seres humanos um desempenho superior ao daquele considerado normal para a espécie. Novas terapêuticas prometem nos levar a um estado supranatural, além das nossas limitações corporais, como se a nossa condição habitual fosse, ela mesma, patológica. Desse modo, mais do que curar doenças, a medicina e afins talvez sirvam para manter a esperança de uma felicidade plena.

Mesmo sendo a história das tentativas de se alcançar essa promessa um relato de sucessivos fracassos, as ilusões de avanço e evolução promovidas pelo aprendizado tecnológico (como a longevidade de algumas pessoas) sustentam firmemente a expectativa de um futuro melhor. Se não foi dessa vez, estamos conhecendo mais, estamos construindo máquinas de diagnóstico e tratamento mais modernas e eficazes, logo chegaremos lá.

Se, no passado, o homem virtuoso era aquele que seguia os preceitos morais de sua religião, virtuoso, hoje, é o indivíduo que consegue acompanhar a receita de uma vida saudável: não fumar, não beber, não usar drogas ilícitas, fazer sexo seguro, praticar exercícios físicos, não abusar do sal, gordura e açúcar, ingerir quantidades adequadas de cálcio, zinco, vitamina B12, ácido fólico e ômega 3, tomar sol (sem exagero) para produzir vitamina D, passar protetor solar, dormir uma quantidade boa de horas por dia, comer regularmente, fazer check-up em uma freqüência correta para a sua idade e risco genético, manter o equilíbrio emocional e evitar o estresse, buscar a qualidade de vida. Enquanto a religião prometia para aqueles que abrissem mão dos prazeres mundanos o paraíso após a morte, a medicina traz a esperança de uma existência longa e feliz. Faz uma equivalência entre quantidade de anos e felicidade.

Assim, a medicina dá a sua importante contribuição para a ideia corrente de que ser feliz é uma questão de acúmulo: quanto mais dinheiro, quanto mais bens, quanto mais sucesso e reconhecimento, quanto mais amores, quanto mais anos de vida, se é mais feliz. Milionários, celebridades e, quem sabe no futuro, centenários saudáveis sejam os novos modelos de vida.

O problema é que, diante desses ideais, as pessoas, no seu dia-a-dia, se sentem fracassadas. Por mais que se esforcem em seguir as receitas vendidas, se percebem sempre fracas e aquém, presas a vícios ou acasos que lhe impedem de alcançar a felicidade prometida. Aqueles que, por ventura, conseguem ter dinheiro ou fama, não têm a mesma sorte em relação à saúde ou ao bom ambiente familiar. Um milionário pode chegar à conclusão de que se preocupou muito com o sucesso profissional, mas se esqueceu de cuidar do sal na comida. Algo sempre fica faltando, algo sempre escapa. A felicidade parece apenas brilhar nas revistas que tratam de celebridades, de saúde ou ginástica; nas fotografias de alegres casais de artistas da TV ou de perfeitas barrigas de tanquinho de atléticos modelos. Uma satisfação sempre suposta em outra pessoa distante e inalcançável, uma felicidade que se saboreia apenas pela inveja.

Na lógica do mais, a felicidade está naquilo que falta, no que ainda está para se ganhar ou no que se perdeu. Uma equação que resulta sempre em dívida, em uma cobrança, em culpa. Deverá ser assim, deveria ter sido de outro jeito. Para eu ser feliz, minha realidade deveria ser outra. Em resposta a esse clamor, as renovadas promessas de transformação da medicina e companhia. A mudança de um ser humano prisioneiro do acaso infeliz das doenças físicas e comportamentais para um ser que é senhor do seu destino e livre das mazelas da natureza. Embora se utilize das ciências naturais, o projeto dessa medicina é fabricar um ser totalmente ideal, virtual.

Voltando à pergunta inicial sobre a serventia de uma análise, pode-se dizer que, se for para ser mais uma a assegurar a esperança de transformação de alguém pior em um ser melhor; de se ter uma vida mais saudável, mais equilibrada ou mais feliz; não há nenhuma necessidade da psicanálise no mundo. Quem se pauta por essa expectativa faz mais certo em procurar a medicina ou no máximo uma terapia alternativa ou livros de auto-ajuda. Não deve perder seu tempo com analistas.

Para o analista não existe uma vida melhor. Ele não tem uma alternativa melhor para oferecer aos seus pacientes. Não acredita e não trabalha com o deveria ser, mas com aquilo que é, com aquilo que se apresenta. Diante das queixas das pessoas que lhe procuram, do lamento de alguém que se percebe como menos feliz, menos amado, com menos sorte, menos tranqüilo, menos animado ou menos saudável, o analista não responde com a promessa de um cenário de mais conforto, de mais perfeição e felicidade. Ele se mostra totalmente inútil diante da expectativa de uma vida mais completa e satisfatória. Responde sempre: é isto mesmo, você tem razão, não dá para escapar disto, o mal-estar é permanente, não existe um sentido final.

O analista não promete o que não tem para dar. Não é agente de uma ilusão, de uma felicidade plena, de uma completude. Ele sabe e faz uso da impossibilidade de alguém ser totalmente amado, seguro e feliz. Não cura essa dor, mas faz dela uma ferramenta de vida. Não transforma ou muda ninguém. Não diz: você será mais feliz quando for outro. Ao contrário, a opção oferecida pelo analista é: seja você mesmo, pare de querer ser outro, de buscar um ideal de si. Viva do que tem, da sua incompletude.

O analista faz uso real da frase (dita normalmente de forma desacreditada) de que nada; dinheiro, saúde, vida longa, amores ou sucesso; garante a felicidade. Ele pratica essa possibilidade. Mais do que apenas dizer para os seus pacientes, ele vive a sua própria existência a partir do impossível de se escapar da morte. Sabe que as outras pessoas, no fundo, se convencem apenas pelo exemplo e não pelo que se diz ou se proclama.

Para o analista, a divisão entre vida pública e privada não vale. Nas atividades que trabalham com a promessa de um ser humano melhor e mais completo, ao contrário, deve-se sempre se portar a máscara de um profissional sério, responsável e bem resolvido. Deve-se vender uma imagem idealizada para o fraco que lhe procura. Os vícios, contradições, azares e incertezas; mazelas das quais ninguém escapa; devem ser guardados escondidos na chamada vida privada.

O analista não percebe a incompletude como um defeito, como um pecado, como algo que resulta em um ser humano ruim ou limitado. Ele gosta, ele ama a condição humana como ela é, a sua imperfeição sem cura. Não tem a pretensão de melhorar ninguém, mesmo porque não se acha melhor ou pior do que aquele que vive na esperança da satisfação total. Não quer convencer o outro de que este deve fazer o mesmo que ele. Não seduz pela inveja.

Assim como o poeta, o matemático ou o ator (ator, não celebridade!), o analista vive com a sua inutilidade no mundo. Ele pratica esse caminho que a vida lhe trouxe porque não tem outro. Como não transforma ninguém, pode ser somente um exemplo; que não pode ser copiado e que não oferece receita; para outros que, como ele, também são marcados pelo impossível. Para aquele que tem olhos para o ver o possa ver. Ele serve apenas para esse encontro. E não se apresenta para os que o procuram como um mestre, um salvador, mas como algo mais próximo de um simples amigo: alguém que compartilha, mas não tira a dor.

Muitos podem pensar que a análise cria um ser humano conformado, triste e desanimado com as limitações da sua existência. A promessa de felicidade plena talvez tenha servido para animar e orientar a humanidade nos últimos séculos. Como na história de se amarrar uma vara com uma cenoura na frente de um burro para se manter o animal em movimento. Se ele, por acaso, alcançar a cenoura, satisfaz a sua fome e deixa de andar. Mas, se também nunca a alcança, um dia ele pode se cansar e desanimar. Quanto passos faltam para esgotarmos a nossa esperança nunca alcançada de felicidade plena? Será que não precisamos de outra alternativa para seguirmos andando? A psicanálise sabe que os seres humanos não são como os burros. Não há cenoura que satisfaça o nosso apetite, o nosso desejo. Ela tenta fazer dessa impossibilidade aquilo que nos movimenta.