segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

VEM SEM FANTASIA

Um amigo me contou que Pablo Neruda, para manter vivo o seu amor pela mulher, escrevia continuamente poemas dedicados a ela. Não chequei se essa informação bate com as referências biográficas do poeta, mas, verdadeira ou não, achei a história preciosa.

Talvez a grande dificuldade amorosa não seja encontrar alguém que nos desperte interesse, mas sim manter o encantamento após uma relação ter começado. Além do cumprimento das obrigações sociais (cada vez menos imperativas), como fazer para seguir com um relacionamento se apoiando apenas no amor pela outra pessoa?

O exemplo do poeta chileno nos mostra que o tempo de uma paixão é o tempo em que se consegue perceber o outro como fonte de inspiração, como algo que nos convida a uma criação permanente.

Diante de alguém que nos atrai, somos tomados pela dúvida que nos convida à invenção de respostas: o que tenho de fazer para conquistar essa pessoa? Enquanto não conseguimos seduzir o outro, enquanto nossas soluções não têm sucesso, a paixão e a criatividade se mantêm acesas. Mas basta nos convencermos de que a pessoa desejada nos ama para que ela perca imediatamente o seu lugar enigmático e provocador e nosso interesse escorra pelo ralo.

Então, para se continuar inventivo e apaixonado, é necessário que nunca conquistemos a pessoa amada? É provável que a resposta seja sim. Entretanto, pelo menos dois caminhos diferentes podemos trilhar tendo em vista essa condição.

Um caminho, amplamente seguido, diz que a nossa satisfação está em descobrirmos a pessoa certa, em termos a sorte ou o bom esforço de achar a pessoa que melhor nos completaria. Para ser satisfeito, preciso de algo que não tenho, algo que está fora de mim. Nesse esquema, para se manter o desejo, é preciso que aquilo que nos promete a felicidade esteja permanentemente distante de nós. Se tenho o que quero, o encanto se quebra. O amor não é para ser realizado.

Pelo o que meu amigo me contou, a mulher de Pablo Neruda não precisou dar o fora a vida toda para ser amada. O poeta soube vê-la como um enigma nunca conquistado mesmo estando próximo a ela. Deste modo, a história de Neruda nos oferece uma outra possibilidade: estar junto de quem se ama e manter a paixão animada.

Esse outro caminho passa por encararmos a impossibilidade de que qualquer pessoa possa nos completar, por sabermos que somos seres que necessitam estar incompletos para existir. Que, ao contrário do que muitos pesam, é esse impossível que nos anima, que nos mantém vivos. Precisamos estar sempre inventando. Se acreditamos em uma resposta definitiva, nos calamos.

Por essa via, amar equivale a criar e não a encontrar alguém que me faça completo, satisfeito e feliz. Amar sem poder jamais ser amado. A satisfação não está em algo exterior, em um ser definido e acabado que está à espera de mim. A felicidade é um ato criativo que não tem um fim, é apenas o exercício.

Eu, as pessoas, a realidade e o mundo: somos todos inconsistentes, inapreensíveis, impalpáveis, inalcançáveis, indefinidos, impenetráveis, imensuráveis e, assim como as mulheres, indomáveis, inconquistáveis e incompletáveis. Nunca poderemos dar a resposta sobre o que o outro quer de mim.

Mas, se não é para me trazer algo, se não é para me fazer mais feliz, para que serve então a pessoa amada?

Pelo caminho do poeta, quando encontramos alguém que amamos, mais do que oferecer um corpo sarado, riquezas, sabedoria, confortos, prazeres, segurança ou sucesso, podemos permitir a essa pessoa a possibilidade de amar, a oportunidade de criar.

Quando estamos na lógica do completar e ser completado, pensamos sempre no que deveríamos ter para satisfazer o outro, naquilo que nos falta para agradar a quem se ama. Como nunca conseguimos chegar lá, ficamos nos sentindo aquém, errados, menores. Permanecemos sonhando com aquele que deveríamos ser para sermos bem-amados. Imaginamos e nos cobramos ser uma outra pessoa, temos um ideal de nós mesmos. No fundo, não gostamos de quem somos. Quando estamos tentando seduzir alguém, vestimos a nossa fantasia, tentamos representar um personagem na tentativa de fazer o outro acreditar que podemos completá-lo. E já que a completude é uma ilusão, a única forma de não deixar a máscara cair é se mantendo bem longe da pessoa desejada. Tornamos o amor um eterno desencontro.

Entretanto, se desistimos de satisfazer os outros, gostamos de uma pessoa não por aquilo que ela deveria ser, pela imagem que ela nos vende, mas por aquilo que ela é, ou seja, um imponderável mistério. Nessa possibilidade, não amamos o ideal que nos é apresentado, mas aquilo que alguém porta de impossível, além da imagem, algo que transcende qualquer sentido, aquilo que faz do outro um ser encantado. No amor poético, pedimos, como na música de Chico Buarque, para a pessoa amada vir sem fantasia.

Ao acolhermos o outro em sua incompletude, o autorizamos nessa condição. Em vez de ficarmos cobrando as pessoas por aquilo que elas deveriam nos dar para sermos felizes, em vez de paralisarmos os outros em culpas e dívidas, podemos ofertar a liberdade para amar. Fazer falar quem está calado, fazer inventar quem está sem saída. Diante da dura e inegociável indiferença do mundo para com os nossos planos, ideais ou ambições, se quisermos seguir adiante em nossas existências, precisamos permanentemente de novas criações, precisamos estar amando. Nada pior para um artista, dos palcos ou da vida, do que deixar de amar, do que não ter a autorização de ser incompleto.

Para permitir o amor em alguém, não devemos ter medo de perder, necessitamos não ter inveja ou ciúmes. Se for o caso, precisamos até mesmo deixar o outro ir e, como na poesia de Roberto e Erasmo, não ter receio de dizer: você pode até gostar de outro rapaz que lhe dê amor, carinho e muito mais. O poeta, coitado, só pode oferecer coisas sem valor e inúteis. Para o seu bem, só pode dar o céu, o infinito.

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