domingo, 13 de fevereiro de 2011

CARÊNCIA E CULPA: FANTASMAS E DEMÔNIOS

Na última semana, uma jovem me contou sua história de desânimo. Ela me falou que, depois de muito tempo triste e com dores pelo corpo, finalmente, tinha passado um final de semana agradável e alegre. Foi ao clube, passeou no shopping e, por fim, na noite de domingo, encontrou-se com um grupo de amigas que não via há meses. Na despedida, uma colega lhe disse que estava feliz por ela ter se recuperado, que agora ela era a velha amiga divertida de sempre, que ela tinha voltado a ser ela.

Na segunda, a moça acordou angustiada, chorosa, sem vontade de sair da cama e com dores fortes nas articulações. Sua depressão havia voltado. Tentando me explicar a razão da sua recaída súbita, ela me disse ter ficado muito incomodada com a frase que ouviu da amiga na noite de domingo. Ao contrário do que poderia parecer, considerou que a intenção da colega foi criticá-la e esnobá-la. Sentiu-se julgada pelo fato de ter ficado deprimida, como se isso fosse um erro. A amiga, com a sua fala, se considerava melhor que ela.

Quanto mais ela se recriminava por estar desanimada, mais desanimada ficava. Considerava que a depressão era um fantasma que jamais iria abandoná-la, estava condenada a ficar mal até o fim da sua vida. Nenhum tratamento daria conta de mudar o seu triste destino, estava cansada das várias tentativas frustradas. Havia tomado vários remédios psiquiátricos com pouca resposta e muitos efeitos colaterais e nenhuma terapia foi capaz de modificá-la.

Mesmo com raiva da amiga, acreditava que ela estava certa: era uma pessoa pior que as outras, seu desânimo era um comportamento errado e condenável. Apesar do apoio de familiares e do namorado, sentia-se solitária, como se fosse um peso para os outros. No fundo, se achava uma pessoa menos querida.

Tanto no início da sua depressão quanto nas suas várias recaídas, o mesmo conjunto de fatores se repetia: ela interpretava algo que lhe diziam como um sinal de que estava sendo repreendida por fazer alguma coisa errada. Em seguida, sentia-se menos amada e ficava desanimada e angustiada.

Em uma outra ocasião, um rapaz me contou sobre o seu problema com as bebidas. Ele fez uma descrição desesperançada de como o álcool estava, pouco a pouco, lhe tirando as forças e o ânimo. Há vários anos bebia, mas, nos últimos meses, a coisa estava mais intensa. Passava por um momento de crescimento profissional, tinha sido promovido com um importante aumento salarial. Mas, chegando o fim de semana, sentia-se sozinho, ficava com vontade de encontrar uma namorada. Ia para as baladas e, para se soltar, começava a beber. Considerava que, enquanto não estivesse um pouco embriagado, não seria uma pessoa interessante aos olhos dos outros. E, por mais doses que tivesse feito uso, achava que não tinha chegado lá, que podia ficar melhor. No final da noite, já pra lá de Bagdá, ficava com qualquer garota que se mostrasse disposta a beijá-lo.

No outro dia, ele acordava mal, pior ainda se percebesse que tinha uma companhia desconhecida na sua cama. Neste caso, dava um jeito de despachar logo a moça. Depois, sentia-se arrependido por ter bebido muito, por ter ficado com qualquer uma. Não se lembrava bem do que tinha feito à noite, mas com certeza havia aprontado coisas terríveis. Era assombrado pelo medo de ter pegado alguma doença ou de ter engravidado a companheira de aventura. Ficava o dia inteiro em casa, castigado pela ressaca, repetindo para si mesmo que deveria parar com isso, que deveria mudar de comportamento.

Na próxima sexta-feira, novamente, era tomado pela carência de achar uma companhia, se permitia ir para a balada jurando que, dessa vez, iria fazer diferente, iria beber menos e escolher uma garota de nível melhor. No outro dia, porém, acordava moído pelos abusos da noite anterior. Mas, quanto maior era a sua culpa, maior era o seu desespero de ter alguém. No mesmo dia, ele encontrava uma desculpa para voltar a beber e bebendo não resistia aos impulsos de mais uma noitada.

Na segunda, ia trabalhar cansado e desanimado, demorava meia semana para se recuperar. Nos dias que se seguiam à bebedeira, seu sono era bastante ruim, tinha muitos pesadelos e, em algumas noites, apresentava a experiência de acordar subitamente e sentir o corpo paralisado. Nestes momentos, era tomado por uma sensação de terror, chegava a sentir uma mão o estrangulando e, confuso, acreditava ser o demônio querendo destruí-lo.

Por mais que tentasse, conseguia, no máximo, ficar um ou dois finais de semana sem beber. Quando menos percebia, novamente, estava entregue à degradação, à repetição. Havia concluído que esse era o seu vício, não tinha jeito de mudar.

Nos dois casos descritos, encontramos um padrão que se repete: um momento de realização, de encontro com algo satisfatório, com algo que se desejava - a jovem que estava feliz por ter passado alguns dias alegres; o rapaz que ficou contente com o reconhecimento profissional. Um outro momento no qual a pessoa se depara com alguma coisa que fura o bom caminhar e a imagem de alguém realizado- ela interpretando alguma fala como um indício de que não está agradando o outro, de que não está agindo corretamente; ele se sentindo solitário, se percebendo como alguém que não é sedutor. Em uma etapa seguinte, encontramos um comportamento que reitera e confirma a percepção de ser alguém errado, carente de algo que deveria ter- a moça se sentindo desanimada e angustiada, o moço bebendo muito e ficando com pessoas que não o agradam. Segue-se, em ambos, um sentimento de fracasso e culpa que é reforçado por uma crença de que estão condenados ao sofrimento, que jamais conseguiram se livrar do seu lugar de seres errados e pecadores, carentes e infelizes. Os dois são assombrados por um medo permanente, pela sombra de um risco velado de destruição e aniquilamento.

A jovem deprimida, recordando com mais detalhes os seus sentimentos em relação à fala da amiga, me disse que, antes de se sentir rebaixada, teve uma ligeira sensação de angústia e medo. Como se sentisse um receio, como se não pudesse ficar bem da maneira que a frase da colega sugeria. Mais que um deboche, na verdade, sentiu uma ameaça.

Tanto a moça quanto o rapaz baladeiro parecem trazer, de forma camuflada, uma mesma crença: eu não posso ficar bem, eu não posso ser diferente, se eu for assim, posso alterar a ordem das coisas, vou ser arrogante e prepotente, vou querer ficar no lugar de Deus. Se eu agir assim, Ele vai me destruir ou minha arrogância vai destruir o mundo à minha volta. Essa fórmula culposa pode ser, assim, resumida: se eu for feliz serei castigado. Para não ser pego, preciso estar sempre pagando a minha cota de sofrimento e infelicidade. Estou condenado a ser alguém carente, menos realizado, menos amado.

É interessante observar que esse sistema velado de crenças é encontrado até em pessoas que não são religiosas e mesmo naquelas que se dizem ateias. As mesmas pessoas que, em um momento de grande angústia ou desespero, apelam para uma fé divina que pareciam desconhecer.

Talvez pudéssemos pensar que esse conjunto de convicções profundas faça parte de um processo geral de esperança em um sentido final. Esse sentido viria do encontro com um outro que nos completaria. A crença em um ser real, exterior, que nos definiria, que nos faria seres concretos e acabados. A nossa imagem seria definida por esse outro que sabe tudo de mim: sou construído, sou feito por um outro. Nesse sistema, Deus é entendido como um ser completo e a nossa felicidade seria, um dia, sermos como Ele. As pessoas portadoras dessa crença estão sempre esperando que Deus, o mundo ou as outras pessoas dêem a elas aquilo que lhes falta, aquilo que faria delas seres realizados e felizes.

A questão é que esse outro nunca nos dá aquilo que buscamos. Quando achamos que chegamos lá, algo vem e nos tira o tapete. Devemos ficar só na expectativa, na eterna promessa, na eterna carência. Aqueles que quiserem ser completos antes da hora serão punidos. Só Ele pode ser perfeito, não podemos querer tomar O seu lugar. Se nos percebemos melhor que deveríamos, tratamos logo de convocar todos os nossos fantasmas e demônios para nos atazanar, para nos infernizar.

Uma matemática que diz que, para mantermos a esperança, devemos estar sempre insatisfeitos e infelizes. Então, para sairmos dessa encruzilhada, talvez, pudéssemos abandonar a disputa por uma perfeição divina.

Se encaramos que a nossa ideia de um ser completo e que tudo sabe é uma ilusão mantida à custa de sofrimento e insatisfação, podemos trilhar um outro caminho que possibilite um sentido diverso para as nossas vidas que não seja o encontro com a perfeição. Em vez de ficarmos fixados no lugar de seres carentes, faltantes, podemos ser indivíduos que usam o que têm, que são inventores.

A pessoa que se percebe faltante acredita que algo que não possui poderia lhe satisfazer. Quando jovem, espera que o futuro lhe traga aquilo que busca. Depois, quando mais velha, passa a um saudosismo da felicidade que teria tido e não soube aproveitar. Nunca é feliz no presente, só em um cenário idealizado em um tempo distante. Está sempre aquém do que deveria ser.

A pessoa carente queixa-se, o tempo todo, de que a vida não lhe deu aquilo que deveria ter dado. Não abre mão de uma desculpa e um culpado para a sua infelicidade. É sempre uma vítima. Teria sido feliz se não fosse o fato de ter nascido pobre, feia ou burra, de ter tido pais pouco amorosos, de ter tido uma doença limitante, de ter sido roubada, de ter sido enganada, de ter um vício, de ter vivido em um país com governo corrupto, de não ter tido oportunidades, carinho ou compreensão das outras pessoas.

De modo diverso, alguém que tem a oportunidade de se ver como inventor sabe que todos os cenários são ilusões. Tem consciência de que toda ideia de uma felicidade suprema e acabada é fantasiosa, mas que também todo sofrimento, todo padecimento, também o é. Sai do eixo ter mais/ter menos para uma realização a partir do uso daquilo que a vida lhe traz. Usas a ferramentas que tem para ser feliz. A felicidade não está no fim, mas na ação continua de inventar. O sentido não está no outro e sim no fazer o outro, na criação sem fim da realidade, no deslocamento contínuo.

O faltante acredita que o mundo o faz. O inventor, ao contrário, aposta que ele é que faz o mundo. Mas, seria isso um ato de arrogância, uma maneira de tomarmos para nós o lugar de Deus?

O inventor não é um Deus que faz tudo o que quer. Querer faz parte das fantasias dos faltantes. Eles é que acreditam que podem ter tudo, em serem completos como Deus. Mas, se isso fosse possível, o máximo que encontrariam seria um tédio mortal. Querer algo, estalar os dedos e ter aquilo na sua frente: em pouco tempo perderíamos o sentido em tudo. Um sentido, para se manter, nunca pode ser alcançado, tem de estar sempre distante, como uma ilusão. A diferença do inventor para o faltante é que o primeiro dá conta de saber, de encarar e fazer uso disto, de assumir o seu lugar de ficcionista, de criador de ilusões.

Inventar não é fazer um objeto que nos satisfaça, que atenda às nossas vontades de sermos melhores e mais completos (normalmente, quando acreditamos em objetos de satisfação, não falamos que isso seja inventar, mas descobrir, como nas ciências, que apostam na possibilidade de se encontrar algo exterior que nos curaria, que nos salvaria. Um crença de quem se vê faltante).

Inventar é se satisfazer criando. Mas qual seria a utilidade daquilo que inventamos? É possível que seja apenas permitir que a criação continue, que ela não tenha um fim, que o deslocamento permaneca e que, assim, possamos nos manter animados e vivos. Uma invenção é aquilo que possibilita que outras invenções possam vir. Se algo interrompe o fluxo criativo, uma necessidade de renovação se apresenta urgente. Como no caso de uma velha represa que, em um determinado momento, tem os seus muros ruídos diante da força de águas que precisam seguir o seu rumo. Essa necessidade visceral de fluidez, de deslocamento de sentido, podemos chamar de poder de verdade, por ela nos mostrar que nossas construções, nossas muralhas, são sempre de areia. Aquilo que vem com força de verdade tem, também, um poder de convencimento, de criar uma nova realidade.

Durante séculos, a nossa forma de manter a fluidez de sentido foi sob o modelo da esperança, da eterna promessa de que um dia encontraríamos aquilo que nos completaria. Um modelo de como alcançar um ideal de perfeição. Um esquema normativo, vertical, hierárquico e piramidal (a maioria em baixo, pouquíssimos em cima) que estabelece posições mais ou menos próximas da perfeição pretendida. Quanto mais alto o posicionamento da pessoa, mais próxima de Deus ela estaria. Algumas tão próximas que tomam para si a função de falar por Ele, de se dizerem intérpretes autorizadas Dele, uma vez que o próprio Deus nunca se mostra diretamente. Essas pessoas se colocam ou são colocadas no papel de mestre, de líder, de autoridade.

O modelo de sentindo que se apóia na promessa de completude só se sustenta a partir da presença de uma autoridade. Aquela que diz e garante o que é certo ou errado, bom ou ruim. Um sistema moral que cria uma meta idealizada que deveríamos atingir. Como já dissemos, a impossibilidade de perfeição é que mantém o deslocamento de sentido, mas desde que não saibamos disto. Para a coisa funcionar, devemos permanecer enganados, iludidos, alienados, imaginando que um dia chegaremos lá. A consequência disso é continuarmos no lugar de carentes, de errados, de sofredores.

Acontece que, aos poucos, foi ruindo a nossa crença nas autoridades. Com o tempo, percebemos que os nossos líderes eram charlatões, falsos profetas. Todos os reis foram perdendo a majestade. Depois do último século, das experiências de destruição do nazismo e comunismo, de Hitler e Stálin, ficou complicado manter qualquer fé em um projeto salvador, em um líder iluminado. Mas o tiro de misericórdia talvez tenha vindo com a internet. Com a chamada democratização do saber trazida pela rede, estamos nos despedindo das pequenas autoridades que ainda sobrevivem, como acadêmicos, críticos, médicos, economistas, políticos etc.

Hoje, está difícil continuarmos aceitando o engano.

Estamos passando de um mundo vertical para um horizontal. Uma vez que sabemos que a perfeição é impossível, não podemos falar em alguém mais ou menos perfeito. Somos todos, irremediavelmente, incompletos. Não existem, em essência, seres melhores ou piores, mais ou menos próximos de Deus, mas seres diferentes, seres inventores de uma realidade própria e possuidores de um valor singular que não pode ser comparado ou medido.

Como a promessa de completude não permite mais o fluxo de sentido, podemos inventar uma nova maneira dessa corrente seguir. Atualmente, os muros da antiga represa ainda não caíram completamente. Vivemos em uma época na qual coexistem o velho modelo faltante e novos seres inventores. Estamos convidados a criar um leito por onde a água possa escorrer. Esse vale, provavelmente, passa pela criação de uma forma de viver que não encontre mais utilidade em carências, culpas e sofrimentos, que dispense assombrações e demônios. Um nova felicidade sem esperança, mas também sem medo.

Talvez não seja isso um ato de arrogância, mas, simplesmente, a possibilidade de atendermos a algo que se apresenta.